A Cruz da Minha Estância

João Arthur Mayer

 

Era cedo, quase alvorada, no campo ainda em silêncio,
quando Miguel, homem firme, de coração puro e denso,
montou no zaino tordilho com a lança e a devoção,
pra ir lutar por seu povo nas causas da região.

 

Na porta do galpão velho, ficaram dois corações:
Maria — sua prenda amada — e o filho com seis invernos,
segurando na bombacha, chorando pelos infernos
que não sabiam dizer, mas já doíam nas mãos.
— “Volto logo, minha flor. Cuida bem do nosso piazito.

Se a guerra me leva o corpo, meu amor segue infinito.”
Disse Miguel com bravura, disfarçando o sofrimento,
e partiu sem mais demora, levando o peito sangrento.

 

Vieram dias de sangue, trincheiras, gritos e fogo.
Miguel virou sombra viva, carne, açoite e desafogo.
Viu amigo tombar sem nome, viu criança virar dor,
mas seguia sempre firme, embalado pelo amor.
À noite, quando a alma pesa e a saudade se agiganta,
pensava na sua estância, na prenda e na criança.
E num canto murmurado, entre reza e cicatriz:
— “Que eu volte vivo ou morto... mas que eles vivam feliz.”

 

Foram anos de silêncio, mas então chegou o fim.
Miguel voltou com a alma em farrapos de capim.
A farda, suja de guerra. O rosto, cheio de vento.
O coração batia torto, mas cheio de sentimento.
— “Logo vejo meu piazito correndo feito galpão,
e a Maria me esperando com sorriso e chimarrão.”
Falava pra si baixinho, cruzando o campo vazio,
sem saber que atrás do cerro o destino rugia frio.

 

Chegando na sua estância, viu o mato dominar,
as janelas escancaradas, o galpão a desabar.
O cusco não veio ao galope, só uivou desconsolado,
e o peito do guasca velho gelou sem ser tocado.
Saiu da sombra um vizinho, homem antigo da lida,
com chapéu sobre o peito e a boca já dolorida.
— “Miguel... meu irmão de campo... que dor me cabe dizer.
Não sei como contar... mas preciso te dizer.”
— “Cadê a Maria? Cadê o meu filho, meu irmão?”
— “Vieram uns homens ruins, num final de solidão...
Queriam vingança antiga, dessas de sangue e poder...
E mataram tua família... pra ti não mais viver.”


Miguel caiu de joelhos, com as mãos cravando o chão,
e um grito saiu da garganta que acordou todo o rincão.
— “Por que, meu Deus? Me deixaste? Por que não levei comigo
a morte que era só minha?! Não... não era pro meu filho!”
O padre veio correndo, trazendo cruz e oração:
— “Miguel, confia em Deus. Tua dor tem salvação.”
Mas o guasca, em olhos secos, murmurou de coração:
— “Deus me tirou da guerra... pra morrer aqui, em vão.”

 

Visitou os dois amores no túmulo à beira da tapera,
e ficou ali parado, como cruz de primavera.
Falava com o túmulo em voz mansa, quase canto:
— “Maria... meu anjo doce... piazito, meu encanto...
Agora sou só lembrança do que um dia fui inteiro.
Nem homem, nem mais guerreiro...
só um casco sem cavalo... só um poste no ponteiro.”

 

Com o tempo, a vila notou que Miguel já não falava.
Só olhava o mesmo campo, onde a saudade cavava.
E numa noite serena, sob a lua sem calor,
acharam Miguel caído... junto à cruz do seu amor.

 

Hoje quem passa no campo sente o vento diferente.
Há um silêncio que se arrasta, há uma dor persistente.
É Miguel, ainda em luto, junto à terra que lhe fere,
esperando o reencontro com aqueles que mais quer.
E no alto de uma cruz torta, feita à mão por emoção,
há um lenço amarrado ao tempo, e um verso em oração:

 

“Quem volta do inferno vivo,
morre em casa... lentamente.
E quem ama além da carne,
carrega o amor pra frente
.