Vendaval
Ruth Farias Larré
Quando ele veio
pela vez primeira,
era somente uma visita estranha,
trazendo lá de longe, além-fronteira,
o belo som da fala castelhana.
Já na segunda vez
– amigo do marido –
vi brilho de espada nos olhos profundos,
senti-me abalada, rubor descabido,
trazia ciclone, virava meu mundo.
Minha vida
rotineira, tranqüila, sem sobressaltos,
virou campo sem porteira, casa tomada de assalto.
E as lidas
certas, os meus afazeres,
o que era bom, necessário e costumeiro
ficou sem graça, difícil, enfadonho:
a horta, a ordenha, a lida no terreiro.
E ele
passou a chegar mais amiúde
os olhos mais ousados cada dia,
um braço que roçava no meu braço:
prazer de brisa, efeito ventania.
A cabeça me manda
ser sensata,
o coração não ouve, enlouquecido.
Inquietude incessante me arrebata,
grita em mim o desejo proibido.
Ah, já me sinto
dominar pelo tirano,
que me atiça, me puxa, me rodeia.
Sim, avança qual potro aos corcoveios,
libera seus instintos sem maneias.
O destino, a
gente sabe, faz os arranjos que quer.
Juntou palha, trouxe lenha, revivesceu a mulher.
Beijos roubados, muy locos, afagos de brisa e mar.
Como mostrar resistência? Como, sem forças, lutar?
E os corpos,
desgovernados, explodem em comunhão!
Andei no céu, criei asas, fui parte da Criação!
Mas, ah, mas foi
fugaz meu delírio, o marido apareceu.
Voltou antes do previsto. Todo o céu escureceu.
Dois titãs se
defrontando, feras em luta mortal.
Uma fêmea ensandecida, uma aventura fatal.
Suspensa como num
transe, no retinir das adagas,
fiquei muda, esfacelada, a alma se abrindo em chagas.
Não sei quem caiu
primeiro, nem qual foi o mais valente.
Fiquei eu como um fantasma, um corpo semivivente.
E hoje, velha,
estropiada, abandonada no asilo,
carrego o peso da culpa, o sem-fim do meu martírio.
Quando me olham e
escutam a história de minha vida,
zombam de mim, acham graça, me chamam doida varrida.
Melhor mesmo que
não creiam, melhor o riso de escárnio
que o grito de acusação. Melhor eu mesma, sozinha,
levar meu triste pecado, meu pontaço de aguilhão.
Mas quero
dizer-vos algo,
mesmo pedindo perdão:
que atire a primeira pedra
quem nunca sonhou um dia
com a ruptura, com a quebra
da aparente harmonia
de uma vida sempre igual,
sem ciclone que devaste,
sem paixão que nos arraste
pro meio do vendaval.