PELOS BEIRAIS DA LAGOA

Mário Amaral

 

Há um ar de ternura nesta noite

litorânea!

As estrelas pousaram no espelho

deste pedaço de céu.

A água clara com semblante de

quem chega,

vai falquejando seus castelos com

mãos de Deus,

numa quietude de espera, com a

vida quase tapera,

para a dança remadeira entre

mate e aguapés.

 

Água, terra, cana, juncos, areia,

pedras, cais... luz,

flores, aguapés, lua, peixes, velas,

sonhos... cruz,

acenam para o bater de asas do

João-grande e das gaivotas,

enquanto o Martim-pescador

cumpre o ritual de vida.

Uma bóia-louca que se desgarrou

de uma mão pesqueira,

expõe a prenhês e a dúvida de

quem também está perdida.

 

Uma mão menina fisga o anzol

com a herança desprendida de

luar.

O espinhel e a rede afundam

n’água, o que restou da

sabedoria...

e da saudade de quem ficou no

rancho esperançosa de

amanhecença,

pra que a lagoa lhe ofereça, além

do remo e da canoa,

os peixes e o pescador para o

viver de mais um dia.

 

Quando a água franze a testa

porque um par de asas quebrou o

silêncio,

ou quando um remanso na

escuridão das lonjuras faz a canoa

virar,

uma lágrima se levanta contra a

maré pra levar para além da

praia,

o soluçar das samambaias, a

imagem de quem de pescador se fez

mar.

 

A alma braceja livre mil segredos

entre os juncais molhando as

penas,

as suas, dos seus e das alvas

garças contrapondo temporais,

enquanto a brisa vozeirenta de

luzeiro vai salgando os caminhos

e pintando de arco-íris a face das

gentes, muito além destes

beirais.

 

Quando o pescador segue seu

rumo lagoa afora,

foge da sina dos irmãos sem-

terra, sem-teto, sem-tudo...

Sulcando vergas como quem

cavalga o tempo com a própria

mão,

deixando a pulsar em peitos fortes

de vivença e de querença,

um país que, como a lagoa, se

doa em forma de pão.

 

O sol que se levanta bem cedinho

vem carregado de bom dia,

pra nos guardar, trocando de

posto com a lua e com a boieira,

vai redesenhando um novo Rio

Grande pelas margens que andam

lentas,

abraçando os campos e as matas,

as serras e as cascatas

as luzes dos galpões, fogueando

madrugadas nos borralhos...

e nos transformando em data

antiga pelas leis do calendário.

 

Mas nesta cena há muito mais do

que os olhos vêem...

Há um desgosto de quem

trancafiou a vida no fundo de uma

canoa.

E o velho remo busca além dos

cardumes transformados em

alimento,

o sustento pra quem nasceu,

sonhou e cresceu com as cantigas,

da voz amiga dos avós e dos endereços

pelos beirais da lagoa.