PEONA

Roberto Mara

 

Eu cheguei como as lanças de taquara,

Quando as cores sangravam seus caudilhos;

E se em vales e serras pari filhos,

Nos mangrulhos do sonho fiz morada.

Cada vez que uma estrela apaixonada

Desnundava pudores na vertente,

Eu buscava os suores do valente

Nos pelegos-vazios de calor,

Como as éguas em cio, sem pastor,

Nas ramadas com marcas sem presente.

 

Inda quase guria, fui mulher

De soldado sem cruz e sem medalhas,

Porque a Pátria se lembra das batalhas,

Mas esquece os que morrem sem saber;

Cada bala no escuro faz nascer

Filho guaxo de peona sem querência,

Que num misto de raiva e de inocência,

Castra as forças da vida nas esperas,

E nas sombras sem alma das taperas,

Reza rezas sem santo, por clemência.

 

Fui madrinha e tropilha de meus prantos,

Cada vez que o clarim doeu distante;

E nos catres sem macho, fui gigante,

Para as vidas e as mortes dos espantos.

Um por um fui juntando medo e cantos,

Às insônias e às ganas de chorar;

E nas pedras amantes do luar,

Qual orvalho que deita de mansinho,

Escondi muitas noites o carinho,

Que as estranhas traziam pra rondar.

 

E fui serva e fui mãe e sentinela,

Na peleia do sulco e nas lembranças,

Repetindo na seiva de lambanças,

Os orgulhos com dente de cadela;

Que há nas fomes sem hora e sem cancela,

Mundos velhos com novos assassinos;

Onde a “sorte” é pataca dos destinos,

E onde o “culo” é tostão de camponês;

Onde a tripa repete a cada mês,

Gritos novos de antigos desatinos.

 

Quando o verde era apenas do estrangeiro,

Eu sentia somente a canga antiga,

Que no lombo gaúcho era fadiga

Que o passado herdava ao peão herdeiro.

Mas, na hora caudilha,  o chão inteiro,

Foi bandeira agitada aos quatro ventos;

E as fronteiras viraram cata-ventos;

Cada poncho sangrando era mortalha,

E a degola, “frieza” de navalha,

Que os dois lados usavam nos “eventos”.

 

 

Meus avós, meus irmãos, tios e pai,

Todos foram heróis que não voltaram

Quando os cascos vencidos retornaram,

Para um lado e pra outro do Uruguai.

Nem sorriam detrás do sapucaí

Maltrapilho, farrapo, vitorioso,

Junto a um “Seu Coronel” voluntarioso,

Que por ter derrotado “tropa alçada”,

Alcunharam de “Seu VENTA-RASGADA”,

No fogão que enlutara o “injurioso”.

 

Os dois lados, pra peona, dizem nada,

Pois tem inda, a picana, “bico” largo,

E há nas cores dos lenços, gosto amargo

De poeira solita, abandonada;

Desconsolo urutau, de madrugada,

Erupção de tristezas vespertinas,

E nas bocas banguelas das colinas,

Vozes frias, sem rumo e sem galpão,

Como cusco sarnento, chimarrão,

Encostado à nudez das sina- sinas.

 

Peona, sim, da esperança feita História;

Dos arrulhos que o tempo não perdoa.

Peona, sim, da coragem que ressoa,

Onde os mortos sem cruz e sem memória,

Enarbolam, românticos de glória,

E infeliz boitatá e os desenganos;

Onde os potros rebeldes, orelhanos,

Preferiram ser mortos como bravos,

A viverem no cepo dos escravos,

O inconstante perfil dos soberanos.

 

Peona, sim, como os rios e o caminho,

Como a lua e o vale e a quebrada;

Como as penas e o riso da jornada,

Repontando as promessas do carinho.

Peona, sim, a agitar campos de linho,

Qual sabi’azul-celeste da saudade.

Peona, sim, peona livre, sem idade,

Onde AMOR fica prenhe de alegria,

A partir um deus novo em cada cria,

Para o PAMPA MAIOR da LIBERDADE.