O FARRAPO
Marco Pollo Giordani
Sobre esplêndida campa em verde-ouro,
De nimboso recanto sobre o mundo,
Muito além do Paraíso, Purgatório,
Ou do inferno que Alighieri arremessou-nos,
E ao contrário de Nirvana - um a um,
De guerreiros primitivos - imbatíveis,
Sob o peso de couraças - cimitarras,
Das bronzinas dos escudos cintilando,
Dos pesados capacetes - dos semblantes,
De ousadias carregados, petulantes,
Nas passadas vigorosas - decididas,
Vivo elo em ferradura vão formando!!
Peitos jovens flamejando cicatrizes
Donde a morte há milênios penetrara!
Mas quem há de vangloriar-se sobre a tumba,
Se à ninguém dissesse mais que pelejara?
Vil, hediondo, tão mesquinho sangue inútil,
Se ao guerreiro não restasse outra seara!!
Reservada pois lhes foram terras tantas
Quantas tantas vencedores e vencidos,
Disputavam quando ainda aqui errantes.
E depois - quando em torno dos que vieram
Nesse ponto de conclave vangloriar-se,
Nenhum passo mais ouviu-se - no silêncio,
Cada qual mais ufano - proclamou-se!!!
De conquistas muitas e de Menes
Que o vasto império viu unificado;
Dos Faraós - Ramsés e tantos outros
Moldes de estadistas e soldadas,
Falou o Egípcio em primeiro
Cujo porte altivo de guerreiro
Vibrava-se à oratória em tom pausado!!
Seguiu-lhe não menos jactoso
Da Mesopotâmia dizendo filho ser,
E dos vales do tigre até Eufrates
Sumérios, babilônios ou assírios,
Podia ele ali representar!!!
Dentre todos vós - pelejadores,
Brilhando em tinta rubra - minha espada,
Há de aqui entre as vossas mais brilhar!!!
Não encimo minhas armas - disse outro,
De porte humilde - mas dominador.
Bem conheceis vós - oh! Valorosos,
Quão valoroso e nobre - meu valor,
Sacro é o livro que me faz história
E se de lutas muitas canto glórias,
Pertencem elas às hostes do Senhor,
Dos juízes - e de Saul, David e Salomão
De renhidos combates aos filisteus,
Dos filhos de Israel - descendo eu!!
Errante andei - porém não destruído
Pois há uma luz Divina em cada hebreu!!
Levantou-se então altivo um persa,
De vistosa armadura - guarnecido!
Dizia ser de Ciro - sua espada
E ter junto a Dario - o grande -
combatido!
e com Xerxes - filho seu
também,
Outros embates bravos empreendido.
Se lá em Maratona o sangue derramei,
Despraz-me dizer que fui vencido;
Há somente em mim o gosto heróico,
De exaltar-me em louros merecidos!!!
Porém, não mais contendo-se um heleno,
Cujo orgulho não mais sustar podia,
Atlético corpo ergueu - em brônzeo escudo,
A talha de espartano se imprimia!!
Eu sou senhor de todos - disse ele
Ninguém há de contestar-me hegemonia!
Quem de vós aqui podeis dizer
A sobrepor-me de guerreiro a estatura?
Porque senhora sabeis - foi minha espada
E mais senhora ainda minha cultura!
Trago de Febo toda luz e ciência,
De Atena e Ares - toda minha bravura!!
Mais eis que então - raivoso e imponente,
Marcial e imperativo - levanta-se um romano,
Cortando ao grego o verbo - que pujante,
Florava em largo tom - vaidoso, ufano!
Cala-te soberbo - pois não cabe ao servo,
Falar vanglórias junto ao soberano!
Quatro séculos de lutas aqui me trazem
Podendo ora chamar-se deus da guerra!
Não houve no universo povo algum,
Que sobrepujasse Roma - sobre a terra!!
Legiões e disciplina inigualáveis
Coragem e patriotismo me fruíram,
Milhares de combates memoráveis!!!
Do Mediterrâneo à volta dono fui
E mais ao Sul vontade impus ao Saara!
Ao norte até o Reno e Danúbio muito pelejei
Desde onde o Sol começa até onde o Sol para,
Da linha do Eufrates aos confins do mar Negro,
Sob esplêndido exército - tudo conquistei!!!
E estava assim o filho de Rômulo,
A exaltar-se em homérica alocução
Quando surgiu-lhe em frente majestosa,
Exótica figura nunca dantes vista,
A de um demônio talvez - deu-lhe impressão!
Sobre fogoso corcel montado vinha
A tirar de todos os guerreiros
Ante a presença do estranho ali chegado.
E este, forte, jovem, ereto, altivo,
Apeou-se e puxando à rédea o flete
Que mostras dava de muito ter andado,
Aproximou-se calmo resoluto,
Com jeito de quem jamais fora mandado!!
Quem és? Donde vens? - Como ousas?
Perguntou-lhe o romano - indignado
Se das trevas vieste se fantasma fores,
Anoja-me ver-te aqui entre soldados!!
Que importa quem sou disse o outro retundante
Cuja lança prateada firme segurava,
E outra arma ali desconhecida era a garrucha,
Pendendo da cintura onde lhe abarcava,
Larga cinta de couro cru sovado,
Onde a bombacha de dois panos se firmava!!
Um lenção de cor um chapéu grande,
De cujo barbicacho a borla dava ao peito
E das russilhonas cantando as nazarenas,
Davam-lhe ao rumo da passada certo jeito,
Estóico, singular, garboso e belo,
De quem só num olhar impõe respeito!!!
Ouças oh! Romano eu pouco falo
Pois ao guerreiro a língua é embuste, creio!!
Para contar de mim eis minhas armas
Se é que há alguém aqui em vosso meio,
Que diga ser possível num cercado,
Mais de um touro mandar num só rodeio!!!
Compreendeu então o ítalo num repente,
Não mais as palavras ali terem sentido
Brilha-lhe na mão desnuda a espada,
Sobe-lhe às faces o sangue enraivecido
E a julgar-se um deus à luta parte,
Contra o estranho demônio aparecido.
Cai fora o mancebo e o golpe apara,
Mas outra estocada vibra-lhe o romano!
Safa-se o tempo e a luta continua
Ofega o romano de corpo já suado
E o estranho guerreiro só a negacear-lhe,
Os golpes cada vez mais demorados,
Cambaleia o italiota vacilante,
Sente pois o braço forte já cansado!
Mais se hora de luta se passara,
Sem que um golpe sequer houve acertado!!
Julgando então em conveniente tempo
De ao ataque passar visto o cansaço,
Feroz investida impôs o mancebo
Desarmando o romano num laçaço!!
Rápido e preciso do flete algo trouxe,
O qual girou sobre o chapéu volteando o braço
E, então viu-se o romano ao chão enleado,
Vencido afinal e preso por um laço!!
envergonhando e abatido “o deus da guerra”,
Sobre cujo peito do estranho um pé jazia,
Como um cordeiro humilde, suplicante,
- Diga-me quem és! Ao estranho balbucia!!
E este arfando o peito em mil grandezas,
Mas sabendo delas ser apenas fiapo,
No silêncio sepulcral olhou a todos
E disse alto e firme: eu sou um Farrapo!!!
Tirando do vencido o laço que o prendia,
Ergueu-lhe e, em nobre gesto deu-lhe a mão!
E eis que transformado disse-lhe o romano:
Pudesse eu chamar-te meu irmão!!!
Respondeu-lhe o farrapo: isto é impossível
Pertenço eu à outra geração;
Se de glórias cobri-me em longa luta,
E se às estas glórias custou-me o sangue irmão,
Obrigado fui pois à margem me puseram
Sentir o açoite duro da opressão!
Porém, jamais o gosto de ser livre,
Pecar levou-me contra a eterna União!!!
Em êxtase me ponho aqui de cima agora,
A olhar vaidoso - todo o meu país
Livre - gigante, laborioso unido,
Bem assim te-lo em outras eras quis
Porém, parti mas floriu meu sangue,
Numa flor de paz que me sorri feliz!!!
Depois então, montando o lindo flete,
Bandeou-se livre como livre veio!
Talvez quem sabe - em busca de outro touro
Que com ele viesse a disputar rodeio!!!