A VOLTA DO PAISANO

Luiz Menezes

 

Prenderam porque prenderam

Nem lhe deram explicação...

 

Só mais tarde na cadeia lhe disse: “à vontade,

Que daqui a pouquito volto

Pra gente dá uma proseada...”

 

Quem falava era um mulato

Com jeito de debochado,

Rindo com o rosto furado

De quem tivera bexiga...

E saiu batendo a bota

Inclinado, tranco duro

Pra mostrar autoridade.

 

Ramão riu da picardia.

Era uma linda ironia:

À vontade no xadrez...

 

Foi pra um canto, ficou quieto

Fez um palheiro, acendeu

Enquanto sentia a espora

Da curiosa indagação:

“Será que ainda lembravam?

Já fazia tanto tempo...

Ou será que não gostavam

De forasteiro na aldeia?

Depois procurou lembrar

Como tudo começou:

Chegou naquele bolicho,

Pediu um trago de canha

Quando quatro melenudos

Lhe cercaram de repente

Pedindo seus documentos...

 

Mas como era orelhano

Porque os que tinha perdera,

Ali estava sem a adaga

E nem do cavalo sabia...

 

Na cadeia o tempo é lento,

Os momentos são eternos...

São como noites de inverno

Pra quem não tem cobertor,

Como custa amanhecer...

 

Lá pelas tantas de novo

Abriram a porta de grade

Entrando um mal-encarado

Pelo jeito, já tragueado,

Que ao ver o Ramão gritou:

Buenas compadre, que tal?”

sem gostar do tal confiado,

mesmo assim respondeu:”Buenas...”

 

mas como todo o borracho

o tal índio era insistente

que nem motuca em ramada.

Logo veio a ladainha

Que o Ramão já esperava...

 

“Pois é isso companheiro,

o pobre não tem parceiro

nem partido ou opinião...

quando vota é no patrão

se não quer perder o emprego...”

depois deu uma gargalhada

debochada, inconseqüente...

 

Ramão num canto, calado

Já bastante desconfiado

Procurava adivinhar

Quando iria terminar

Aquela prosa vazia...

 

No fundo até concordava

Com o que o borracho dizia...

 

Não demorou muito tempo

Lá veio o índio de novo

Buscando puxar assunto:

“Permita que me apresente:

eu me chamo Zé Capincho

e o senhor como se chama?

“Ramão...” respondeu fechado.

“Mas diga, Ramão de quê?”

“Ramão no más... E calou.”

Caramba! Que nome curto...

foi o breve comentário,

como que já cutucando

pra seguir na indagação...

“É novo por estas bandas?”

“Não vejo porque não seja

que ninguém me conhece...”

 

e sem mais uma palavra

foi se afastando pra um canto.

Deitou num colchão surrado

E com o chapéu sobre os olhos

Pensou:”Vou tira um cochilo...”

 

O tal índio Zé Capincho

Fez que engoliu a resposta...

Mastigou um riso sem graça

E zombou “Ramão de nada...

Deu uma baita gargalhada

Enquanto passeava lento


Na pouca sobra do espaço.

 

O Ramão que era um arisco

De um salto ficou de pé,

Quando alguém puxou o ferrolho

Da fechadura da porta,

Por onde entrou, barulhento

Gritando pra os quatro ventos

Pra se fazer de importante:

“O homem quer te fala...

Bamo que ele está esperando...”

 

Depois olhou para o Zé:

“Tu já pode te arrancá...

e vê se cria vergonha

nessa cara deslavada...”

 

Ali frente ao comissário

o Ramão ficou esperando

enquanto o homem escrevia.

 

E nesse curto silêncio

Em que destino está em jogo

Um vago pressentimento:

“Engraçado, aquele tipo

não lhe era nada estranho...

de onde é que conhecia?

andou campeando a memória

mas qual nada, não lembrava.

Talvez não fosse, quem sabe...

 

Quando levantou a cabeça

E encarou o Ramão de frente,

Ao comissário também

A mesma interrogação.

Apesar daquela barba

E o cabelo encanecido

Não era um desconhecido...

Tinha certeza que não.

 

Ficou um tempo calado,

Depois falou pra o mulato

Com quem não casava bem:

“E agora diga seu Donga

qual é o causo deste homem?

“Foi pura averiguação...

respondeu meio sestroso.

“Bueno mas me deixa só,

preciso prosear com ele...”

 

quando o Donga foi saindo

os dois homens se encararam,

talvez buscando a resposta

que ao certo nenhum sabia...

foi bem longo aquele instante

do “Conheço...Mas quem é?”

 

Por fim falou o comissário:

“O senhor tem documento?”

“Desculpe, sou orelhano

porque os que tinha perdi...”

o comissário insistiu:

“Seu nome e d’onde vem?”

Me chamo Ramão, senhor

venho da banda oriental...”

“E qual é seu sobrenome?”

Echivarria, senhor...

mas por onde tenho andado

sempre ganho um apelido...”

 

Era muita coincidência

Pensou o moço policial...

Mas seguiu na indagação:

“O doradilho no pátio

é de sua montaria?

“Sim senhor, é meu cavalo,

e guapo nas arrancadas...”

 

disse com orgulho Ramão.

“E os cascos bem aparados

demonstram que tem cuidado...”

Falou com certa malícia

O comissário pescando...

 

E atirou à queima-roupa

Usando toda a experiência

Sua pergunta fatal:

“Nunca montou num rozilho?”

Foi um baita tironaço

Que fez o Ramão pensar...

Porém só para aumentar

A grande curiosidade

Do homem que lhe inquiria,

Pois nesta altura sabia

Que fora reconhecido,

Respondeu rindo atrevido:

“Sim senhor tive um rozilho.

Era como um pensamento

O meu rozilho cinzento.

Nunca terei outro igual...”

 

Os olhos do comissário

Brilhavam como antevendo

Que era chegado o momento

De dar o bote final.

O candeeiro da lembrança

Alumiava-lhe a memória...

 

Tinha certeza...Era ele

O Paisano que voltava


Vindo quem sabe de d’onde

De algum rincão oriental...

 

E até parece mentira

E quem diria caramba,

Que aquele índio sereno

Que olhava assim bem de frente,

Fosse um guapo diferente:

Honrado e respeitador...

Por isso engasgou a pergunta.

 

Seria até um desrespeito

À aquela barba grisalha

E ao lenço preto mortalha

Que trazia no pescoço,

Desde seus tempos de moço

Quando andara por ali...

 

O Ramão também lembrava

De um mocito ainda novo,

Numa bailanta do povo

Brigando com a capangada

Do coronel Juvelino...

 

Como ainda era um menino,

O Paisano entrou na farra

Aproveitando a algazarra

Gritando:”Aqui meu filho!”

E deu de rédea ao rozilho

Lhe tirando do entreveiro

Dizendo:”Guri arteiro,

Tu não que ainda é mui verde

Pra enfrenta esses pelegos

Que são cancheiros demais?...

 

E agora ali, comissário,

Quem diria...Aquele piá.

Com uma nesga de saudade

Foi escondendo a verdade

Que não podia contar...

“E parece que foi ontem,

no entanto, faz tanto tempo...”

 

Os dois homens se encaravam

Embuçalando a emoção...

 

Eram como dois irmãos

Que de há muito não se viam.

Paisano e comissário

De frente em lados opostos

Amargando esse desgosto

Não poderem se abraçar,

Pois tinham que resguardar

Uma estória já esquecida...

 

Levantou o comissário

Andou lento até o armário

De onde tirou uma adaga

Indagando:”É sua, amigo?”

“Sim senhor, é minha adaga.

Carrego no más por nada,

Acho que nem sei usar...”

Disfarçando o comissário

Conteve a intensão de rir...

 

Pois bem sabia que à sombra

Daquela aparente calma,

Havia um tigre escondido

Que nunca, nenhum bandido

Pudera perto chegar...

 

Mas passaso aquele instante

De breve reflexão

Contendo ainda a emoção

Com a voz meio embargada,

O comissário, outro guapo,

Entregou a adaga ao Ramão

Dizendo:”Foi um piazote

Que pediu que lhe entregasse.

Leve no más companheiro,

Mas esconda entre os pelegos

Nunca se sabe...Às vezes

A gente até necessita...”

 

Quando o doradilho

Depois de bem encilhado,

Ramão olhou o comissário

E agradeceu com respeito:

Gracias senhor comissário!

E não esqueça...Se um dia

Nessa imensa pradaria

Encontrar com um piazote

Arteiro e meio briguento,

Diga-lhe que ainda é mui verde

Pra anda metido em bailanta...”

 

O comissário sorriu

Com uma certa nostalgia

Antes de lhe responder:

“Eu direi, claro que digo.

Eu também lhe peço amigo

Um favor...Um quase nada:

Se num bolicho de estrada

Topar com um velho Paisano,

Dê-lhe um abraço de Hermano

Que eu quis e não pude dar...”

 

Se olharam como dois guapos

Que se admiram e não dizem.

Depois houve um breve aceno,


Um “até-a-volta” e nada mais...

 

No rumo do horizonte

Onde a tarde escurecia

Um doradilho seguia

Buscando o além infinito,

Nesse destino proscrito

De nunca se arrinconar...