Memorial de um Tempo Antigo
Léo Ribeiro de Souza
Repisando
o próprio rastro que ficou petrificado
nos lamaçais, por três dias,
quando desceram as quebradas da Serra da Bananeira
rumo a Conceição do Arroio.
Sentindo ainda o perfume da maresia praieira,
vem de volta a comitiva, despacito, a passo lerdo,
de alguém que andou e andou sob o sol de muitas braças.
Cinco
homens bem montados, com estirpe campeiraça,
em arreios requintados sobre fletes amilhados,
vem proseando sobre o tempo e os segredos das lavouras.
Dois guris vem lá no coice, em fuzarca, a trote largo,
dando risada por nada e assoviando o "Mate Amargo".
A piazada não cansa...
Doze
mulas no compasso do cincerro tilintando
vem mermando lomba acima com bruacas estufadas,
arreatadas com o jeito de quem cresceu nas tropeadas.
Desceram com charque gordo, queijo novo, algum pinhão,
e sobem com canha pura, com farinha, rapadura,
açúcar amarelado e melado em borrachão.
É a
troca de mantimentos que por muito foi sustento da gente da região.
Num
cerro limpo estaqueado, entre dois capões de mato, vão tirando o pé do estrivo e frouxando os aparatos.
Estirando a pelegama, capa Ideal, o chergão,
ao cabo de pouco tempo um catre sobre a campina
fica a espera de seu dono.
Os
guris catam gravetos, já coacha alguma rã,
juntam tudo que acham seco contra um pau de tarumã, e
fantasmas de fumaça prenunciam fogo alto.
Enquanto
a cambona antiga aquenta a água pro mate alguns atam
a cavalhada, outros revisam cargueiros.
Nicanor, o peão caseiro, chega toucinho e uns temperos
numa panela mulata pra um guisadito com molho.
É mestre nestas manobras...
E a burdoga prega o olho na espera de uma sobra.
E
depois da bóia quente vertem causos e delongas,
a cantar a sua gente alguém lasca uma milonga.
Seu Acácio, com paciência, pica fumo, arma um pito,
prende fogo, exala a essência de um palheiro criolito,
vaga-lume das noitadas.
Outro
bugre busca o sono estendido nos bacheiros
sob o pé de um cinamomo no bombeio dos luzeiros.
Então rebrota a saudade que é brasa em cinza oculta,
e na distância de casa basta um sopro, já se avulta.
E
por falar em saudade, este meu canto reverte pra um tempo que foi embora
com a minha mocidade.
Emudeceram as esporas, hay silêncio nas
pousadas,
a bodega hoje é tapera, nada mais é o que era,
a relva cresceu na estrada.
Não
se escuta a ringideira dos balaios de taquara
e o bate casco das tropas desviando das coivaras.
Ninguém emborca porongos
para encher de água corrente pelas sangas do caminho.
Ninguém
madruga ao relento, não se escuta nem lamentos
do dedilhar de algum pinho.
Três
Forquilhas, Três Cachoeiras, Barra do Ouro, Itati,
se aquerenciou com os povoeiros aquele antigo
tropeiro
que andejou por aí.
E a
Serra da Bananeira, onde Cristóvão Pereira
também cruzou algum dia,
ficou na minha memória que por bem ainda não falha.
Ficou nos ranchos caboclos, no canto das cotovias,
ficou nos avios, nas tralhas, na minha simbologia.
Mas
se a vida é um reencontro, num futuro, logo adiante
surgirão nestes lançantes nova tropa de muares,
nova gente caminhante.
Nova
chama aquecerá o entorno do borralho,
vasilha com carreteiro e um milho verde espetado
e nós seremos lembrados em algum causo retrechado
por um turuna qualquer.
Nos tornaremos passado, lembranças e nada mais.
As
nossas dificuldades, bravuras, felicidades,
não estarão nos anais...
Mas
vivenciei meus momentos de uma maneira terrunha
e por isso não me queixo.
A calma destas pousadas, uma existência regrada,
o ir e vir das tropeadas, a parceirada de lei,
são partes da minha jornada que jamais esquecerei.