O RETRATO DE QUANDO O ONTEM ACORDOU GURI
Julio César Paim
Olhem!...
Olhem a estampa desses guris
de agora,
mas olhem com olhos de aves sonoras!...
Parecem que eles trazem em si
uma estampa milenar.
Parece, não! Eles tem em si essa dimensão!...
Porque tem nas veias um
sangue guerreiro
correndo livre... Porque eles tem
alma de campeiro...
... e
um coração moço, que ninguém contém no alvoraço.
Mas eles
tem também muita sensibilidade
pra trazer, do fundo da invernada, uma flor de campo
pra enfeitar o cabelo da amada...
As rosetas das esporas
parecem estrelas
a riscar de luz o caminho por onde passam!
Seus olhos parecem... E são, sublimes luzeiros,
que trazem em si uma chama de amor mais viva que nunca
e, a certeza de que tem o mundo ao alcance das mãos...
E tem!... Os pealos da cucharra falam por
si...
Com destreza saltam no lombo
dos cavalos
e mandam ver armadas grandes campo afora!...
E na marcação, no jeito de
assinalar e marcar
o fazem com agilidade dos moços
e, a confiança do mais velho peão.
Nos rodeios
dançam e cantam de alma aberta!
E, ao abrir as cordeonas, abrem fronteiras pra imaginação!
Com garra, deixam os dedos passear nas cordas da guitarra!
Parecem senhores da
declamação... E na parte campeira
mandam abrir a porteira e lançam armadas certeiras
que jamais caem no chão... Aliás, o chão não é o limite
e não impõe medo ao olhar ginete que começa pelos
terneiros,
pra depois montar potros caborteiros
que elevam sonhos ao céu...
E, na ponta da lança, ensopam
camisas de suor
pra ganhar mais um troféu e mostrar quem é o melhor.
Por favor, abram os olhos,
senhores dos ideais de ontem!...
E olhem a estampa desses
guris de hoje!
Neles está a essência - a
mais pura flor da querência...
... a
consciência de uma pampa que não quer tombar.
Não fechem os olhos ao novo
horizonte,
antes que a aurora amanheça coemitã!...
Olhem a estampa desses guris
de agora,
porque eles serão os homens de amanhã!...
Uns são morenos, magros,
melenudos...
Outros, claros, gosdos, sisudos... Orgulhosos
de ter que abrir mais dois furos na rastra
de couro.
Parece até que abrem
porteiras de novas invernadas
arrendadas de vizinhos embretados nos
anseios.
É após a campereada,
sem que ninguém lhes mande,
desincilham o
cavalo, guardam os arreios
e, feito um gato, num upa,
sobem no tarumã
para atar o cabresto num galho bem alto,
evitando assim que o cavalo meta a mão...
Se adaptados à cidade, aos
colégios...
... ou
campeiros natos, educação não lhes falta.
Ao entrar no rancho, sempre
tiram o chapéu,
e agem da mesma forma ao cumprimentar os mais velhos.
À beira do fogo cevam o mate,
menos amargo que a lida!...
Recordam tropeadas de
sonhos... campereadas...
Contam histórias... relembram batalhas, vitórias...
E quando falam de carreteadas - romances de estrada,
é como se carreteassem a própria
vida, para trás!
Ah! Esses guris!...
Esses guris que há pouco usavam suspensório,
calça curta. A vincha na testa...
os pés no chão!...
Eles cresceram mais rápido
que o campo em brotação.
E hoje estão aí... Melenas
compridas
- o avô do meu avô também
usava melenas longas.
Ah! Esses guris, olhos claros
de horizonte...
... eles são o retrato mais fiel
de um tempo...
... de
quando o ontem acordou guri.
Porque eles trazem em si uma
estampa milenar:
camisa branca, a bombacha larga, rastra na cintura...
... abotoadura
do avô. Lenço no pescoço.
E o chapéu na mão, não para
mendigar mas, por educação.
Ah! Esses gurris!
Eles são os herdeiros,
os verdadeiros herdeiros da querência...
... porque
eles tem sangue guerreiro nas veias...
... o
canto do galo nos calos das mãos
e, paciência pra enfrentar a mais xucra solidão!...
E porque eles ainda são
capazes de sonhar!
E, transformar um sonho em
romance de amor...
E principalmente porque eles tem alma de campeiro
e, um coração capaz de amar a vida inteira
a mesma mulher e o mesmo chão.
Por tudo isso, e muito mais
não podemos continuar presos aos ideais de ontem.
Um velho ideal pra não
represar precisa de sangue novo,
e, ele está nas veias desses guris de hoje.
Neles está a
raiz do sangue, a essência...
... a
consciência de uma pampa que não quer se entregar.
Não podemos negar
a existência do horizonte novo.
E não temos o direito de
virar a cara
ao sol mais livre, que vem nos despertar...
Não fechemos os olhos para o
futuro da Querência
que herdamos, mas que já não nos pertence!...
Pensemos bem! Porque o tempo
passa voando...
Que a vida é um cavalo de
vento
que não se deixa cabrestear...
Portanto, antes que seja
tarde,
levantemos aos olhos para a aurora:
ave sonora em silêncio na pampa,
antes que a aurora amanheça em prece coemitã!...
E exaltemos a estampa desses
guris de agora,
porque eles... Eles serão os homens de amanhã!