Dos Mascates de Si Mesmo

Julio César Paim


“Vende-se uma carreta
e uma junta de boi manso...”

A princípio, o anúncio me saltou aos olhos
como se fosse algo encomendado, premeditado...
Mais um desses classificados,
inventados apenas para emocionar
um homem de raízes campeiras.
Ou para afogar, de uma vez por todas, numa lágrima,
a velha premissa de que homem não chora.
Mas não era uma brincadeira, não!
Logo abaixo havia um número de telefone
e a indicação “tratar com fulano de tal,
em horário comercial...”

Repentinamente, a minha mente
foi tomada de uma paralisia momentânea...
E o ringido que é o pranto incontido
de carretas antigas
se fez cantiga de assombração,
unido ao mugido dos bois mansos da canga.
Inseparáveis
que se vieram – asas de vento –
lamber o sal do suor, na minha mão.

Mas agora o tempo é outro e o espaço também!...
O suor das mãos tem um cheiro diferente...
A corrida atrás do dinheiro, a falta dele
desfez o brilho dos olhos campeiros.
O olhar estradeiro perdeu o anseio de andar
e, conformado, acostumou-se à saga das ruas...
... a esse formigueiro humano em que todos vagam,
sem sair do lugar, tentando, em vão, rebanhar
lembranças perdidas nessa selva de pedra,
onde apenas as velhas esquinas
não se deixam dobrar.

Pra onde marchamos?...
Que tempo é esse, capaz de transformar
seres humanos, contemporâneos,
em mercadores a esmo...
... em mascates de si mesmo?...

Se alguém não sofre do coração...
... e, tem sangue frio, alma de ferro,
artérias plastificadas e nervos de aço...
... então abra s páginas dos classificados.

Dê uma passada no brique da Redenção, na Capital,
ou entre numa loja de antiguidades, no interior...
... e verá coisas tão importantes
sendo comercializadas por tão pouco:
arreios, discos, negros “gramophones”...
Roupas de homens e mulheres seculares...
Abotoaduras, espadas, medalhas...
Camafeus (de origem européia)...
Leques, anéis de brilhante, alianças...
... que fizeram bodas de ouro sem sair do dedo.
E até romances de amor que, de geração em geração,
Vieram vindo, emprestados. E foram ficando amarelados,
Pra trazer dos avós até nós a essência dessa paixão.

E o pior é que, até nós
- netos e bisnetos desinformados -
estamos comprando e vendendo as fotografias
dos nosso próprios antepassados...
Fotografias sem nome nem sobrenome,
Que encontramos em promoções do tipo
pague duas e leve três...”
Sem questionar as dessa vez formaremos,
Pelo menos, um casal
Ou se colocaremos pra sempre na parede da sala
Três pessoas que nunca tiveram nada em comum...

Compra-se
... Troca-se... Vende-se...
Ah! Se a gente pudesse colocar uma pedrinha
na vesícula do relógio de arei, pra sentir a dor
de parar o tempo, e voltar ao campo
em busca da essência, da raiz de um cravo vermelho
- a mais medicinal e campeira flor!
Ah! Se a gente pudesse trocar
uma arroba de saudade por um naco de esperança
e dar de volta um cargueiro de amor!...

Mas hoje tudo tem que ter um preço, um valor...
Nos briques, mos antiquários, nos classificados
dos jornais da capital e do inteiror
a gente encontra de tudo á venda: rins,
coração (e quanto custa a emoção?)...
Olhos, mas e o brilho deles ao ver a amada
que tem outro nome?
E o anseio deles de horizonte e estrada
por quanto se vende na córnea alienada?...

Eu só não consigo acreditar
que, em pleno século vinte, tenhamos colocado
definitivamente a carreta na frente dos bois...


E que tenhamos ido ainda mais além


e posto à venda a carreta e os bois!...

Imaginem o abandono e a tristeza de uma estância,
Por mais simples que seja, ao ver o próprio dono
repontando-se com os bois mansos para o matador,
onde a lâmina fria da faca exangue
vai moldar, no sangrador, a rosa de snague.

E imaginem a dor de uma carreta antiga
Ao ver calada a eterna cantiga de roda da roda...
E depois ser charqueada... Parte á parte:
as rodas e os raios de sol, para os portões e luminárias...
A vontade férrea, para o ferro velho...
... e o resto da carne vegetal envelhecida
sendo esquecida á sombra do tempo,
como se não tivesse vida...

Somente alguém com coração de pedra,
com alam de ferro, artérias plastificadas...
... e nervos de aço
seria capaz de colocar à venda
um pedaço inalienável e inseparável de si...

Somente um louco, talvez
cometesse a insensatez de de pôr à venda
um pedaço da própria alma...
Do próprio sangue... da própria carne.
Porque certamente, em sã consciência,
... um homem de raízes campeiras, jamais,
jamais se tornaria mercador,
um mascate de si mesmo...
... ao ponto de colocar-se à venda
com a carreta e a junta de boi manso.