O GURI DA GAITA

 Juarez Machado de Farias

A minha infância residiu 

Na costa do arroio,

Na costa do rio.

 

Meu arroio Barrocão

Se derramava em canção

Pra morrer no Camaquã... 

 

Cada grito de tajã

Meu ouvido de guri

Escutava cada som:

água, vento, bem-te-vi...

 

Calhandras, quantas calhandras

Beliscavam nos varais,

E copiavam outros cantos

Dos ninhos nos matagais.

 

O rádio grande da sala

Trazia os sons da cidade;

E os programas regionais

Esta musicalidade

Que se traduz em violão,

Cordeonitas de botão,

Trova e declamação,

Sentimentos de saudade...

 

Eu só queria uma gaita,

Uma gaitinha-de-boca,

Pra tocar uma valsinha,

Com aquela vozinha rouca.

 

Que aquele som cativasse

Cada ouvido em que chegasse.

E que alguém, num jeito taita,

Por graça, me apelidasse

Só assim: “Guri da Gaita”.

 

Quando a gaitinha chegou

Enrolada e misteriosa

No mais soturno do bolso

Da bombacha do meu pai,

Eu abri o maior sorriso,

Que outro igual não me sai.

 

E de vereda colei

Meus lábios aos lábios dela,

Feito um príncipe que beija,

Com amor, sua donzela.

 

Fui tirando uma marquinha,

Treinando a respiração,

E nuns três ou quatro dias

Tocava até vaneirão.

 

Mas meu pai, num outro dia,

Me trouxe um acordeon

De oitenta baixos e disse:

“Isto pra ti é que é bom!”

 

“Gaita-de-boca é pra louco

Que esmola em rodoviária!

E eu guardei minha gaitinha

Com sua voz solitária...

 

Mudei-me – como faz tempo! –,

Deixei o arroio e o rio.

Mas não mudei minha alma,

Muito menos meu feitio.

 

Quem me olhar bem nos meus olhos,

Enxergará lá no fundo,

Aquele “Guri da Gaita”

Que só pedia pro mundo

Uma gaitinha-de-boca

- “Pode ser piquinininha” –

Que tocasse com voz rouca

Ao menos uma valsinha...