TEMPO, VIDA E SENTENÇA
Joel Capeletti
Ante a lúcida e rubra
Labareda do borralho,
Solito e acoçado,
Desperto de um sono
De frio e arrepios
Que já não consigo
Distinguir de força e
tamanho.
No espelho dessas chamas
Vejo-me pequeno e penitente
Às vergas do aço de um freio
insípido
De longas noites de espera e
procura.
E o tempo se esvai
Como a fumaça das cinzas.
Só agora sinto
Quanto o minuano dos agostos me tomou.
Percebo que da derme
Brotaram rugas paralelas,
superpostas,
Trançadas como a tento cru
Pela galgura
dos dias de arranchamento.
No passar desse tempo,
Mãos e juntas ficaram
caborteiras
E nem sequer obedecem mais
Meus instintos e reflexos
espontâneos.
E de tudo isso, à noite, no
catre,
Que também já não é mais tão
macio,
Retornam lembranças áridas e
sufocantes.
As parcelas e direitos
mudaram.
O mundo mudou e a vida mudou;
Toda essa imensidão
totalmente mudada.
E hoje vejo que meus metais
de adaga
perderam todo o seu brilho
e estão opacos e apagados pelo tempo.
O laço de couro rijo,
Oito tentos, doze braças,
Também padeceu escravo ao
trotão do tempo,
Tão largo
E paralelamente tão escasso.
E os pensamentos...
Ah! Esses redomões
Que larguei “ a la cria”
E sempre retornaram
Pela fronte esconsa do
galpão.
E eles eram como potros
ariscos
Que pertenciam ao campo
De uma imensa estância
Que nunca chegou a ser minha.
Por necessidade,
Esses pensamentos
Bateram patas e revocaram
crinas,
Sem destino ou sorte.
Por isso perdeu-se meu caniço
de lambaris.
Perdeu-se a sanga
translúcida.
Perdeu-se o petiço moço...
E foram se perdendo as
alegrias
Dos domingos de cancha reta
E namoros escondidos.
De novo
O tempo a galope.
Aquele velho laço
Virou troféu,
Mais uma cordoalha
Em parede escura de pobre,
Parceiro dos mesmos
Ferros em cor de ferrugem.
Fui crescendo de ímpeto
E foram sobrando memórias
foscas.
Moldei-me à mescla bugra
Do barro vermelho das
artérias
E das poeiras de longas
estradas.
E daqueles domingos
Restaram tão somente
Sinos ressonantes
E tardes simbólicas de pedra.
Passou-se a tropilha de chucros.
Passou-se a sorte de moço.
O sol emborcou no horizonte
E agora faltam-me
patas para alcança-lo.
E no regresso
À agonia das horas,
Vejo que o sofrimento
Moldou os sulcos da pele
Em ásperos e sal.
A dor presente
Como ferida mal sarada.
E o campo ainda não é meu.
Depois de
Mais de meio século de
invernias,
Percebo que o homem da terra
Não tem terra
E que o ferro em brasa dos
anos
Arde no lombo inerte
E ausente de rigidez.
A esse homem sobrou somente
A acolhida da velhice
E nos últimos dias de espera
Ficou a absorver, em seiva
amarga,
O sofrimento
De suas lacunas incontidas.
Nesse entrevero.
Passaram-se os dias alvos
E noites caladas.
Foram-se os arrebóis
De matear
solito
E ficaram soluçando
Saudades ausentes do
infinito.
E as paredes dos tempos
Agora apenas sustentam
Piduricos e caronas,
Alforges e cartuchos,
Que sucumbiram ao mofo da
idade.
Hoje despertei destes sonhos
Em cascos de vento.
Pelo mesmo suor derramado
E pelos mesmos ferros
oxidados,
Sinto no jorrar do meu sangue
Que minha vida não
Se perdeu em vão.
E nessa minha velhice
De cernes
e certezas milenares
Acolho, sem ressentimento,
Como testamento dos tempos,
Aquele mesmo minuano...
Os mesmos agostos...
E as mesmas geadas...
Porém,
Apesar de minha melena mais
moura,
Meu semblante é mais sóbrio.
Alegro-me ao saber
Que nada se perdeu.
Tudo ficou guardado
Em memória de
Letras e fatos,
Cansaços e agonias,
E cabei por aprender
Que o fim da vida
Está tão distante
Quanto o começo de tudo;
E o resgate de um homem
Sem legado
Sempre será
O chão onde nasceu
E fincou suas raízes.