SESMARIA D´ÁGUA E SAL

João Antônio Marin Hoffmann e Sebastião Teixera Correa

Tava incrustrado no couro, já era herança de vidas...
Queria cambiar deveras, de posteiro, minha lida,
Quando o capataz matreiro deu-me um presente de grego,
Já me esperava ençilhado, o maula de cabos negros...

 
O riso se fez presente, prá não dizer gargalhada,
Enquanto os lábios do chão deixava o gosto nos meus,
Vinha parido entre dentes, lembro-me, assim, vagamente,
O kákáká da moçada...


 Me bandiei pro litoral. . .
Recuerdos das pescarias junto aos riachos na infância,
Transbordando da memória, se faz presente à distância. . .


  Acordei o piá mais velho, que a lide empeçava cedo.
Juntei as tralhas de pesca, como se junta os arreios....
Sem dar ouvido prá um lobo que do mar anda curtido,
Pontiei a contragosto, pois nestas horas !!! Mico,
Quando o lar desprovido, nunca se escuta conselho...


 O sol, no sono dos justos...
A lua sempre narcisa, como se fosse prá festa,
Retocava o pó do rosto, usando o mar por espelho...

 
Dos rastros feitos na areia, não tinham das bota, o taco.
Feito redomão, meu barco, cismava não se aquietar...
Ganhei o convés do Taura, como o lombo d’um bagual,
Do cais soltei os cabrestos e nos bandeamo a la cria,
Engolindo sesmarias da invernada d’água e sal...

 
De Osório até o Arroio, dei três lances, sim senhor...
A rede se fez moldura d’um quadro fartando a mesa,
Parecia o tal milagre de Jesus c’os pescador...


 Larguei ao léu o timão, desventurança deu cria,
Por que a ganância no dia deu um golpe na razão...
 
O parcel tem beijo duro, reclama o casco do Taura.
Das crinas que eu campiei, do tirão inesperado,
Catei o vazio do espaço...
Restou-me a água por cais, e do mar o seu abraço...

 
O meu filho, lá adiante, com sua mão estendida,
Como a procurar alguma, que lhe prouvesse guarida...

 
Do meu Taura, vi então, a proa se alçar três vêzes,
Como um aceno de adeus, usando a mesma por mão...
Minha última lembrança é este mar-caprichoso,
Embalando-me em seu ventre de forma tão maternal...


 Foi num tisco de segundo, acho que vi minha amada,
Ou do mar Iemanjá, envolta em luzes, de azul...
Sem licença, permissão um sul que adentra m’as ventas,
Trazendo odores do campo, dos rodeios, marcação. . .
Gaivotas bordando o azul, parceirando o algodão. .

 
Da velha rede de pesca, depois da lida estafante,
Seus rasgos feito feridas pelo abraço d’um coral,
Dormem ao sol escaldante, secando os dedos trançados,
Enrugados pelo sal...

 
Não sei se sina ou destino; por ser intrépido, audaz,
Netuno levou meu filho, prá Atlândida perdida
Ter seu próprio capataz...


 Quinze dias são passados, pesados posso dizer;
Por que da vida “no más”, se foi assim a la cria ,
Toda razão de viver. . .
A mãe não fazia outro, chorava a ída de quem não iria retornar...
Osório, Tramandaí, Capão, Maquiné, Arroio,
Virou rotina dos dias, todo o norte litorar...


 Do olhar, perdi o viço. . .
O cabelo, outrora negro, já sem zelo, grisalhou...
O riso anda silente, meu prosear que era pouco,
Agora, então, se calou...

 
O coracão fez-se porto, onde navios de lembranças
Atracam todos os dias...
D’esperança d’antes vivo, perdeu pela mesma o gosto.
Anda pilchado em saudades, prá uma tal conformidade,
Deu albergue, cedeu posto...


 Os olhos d’antes serenos, se pegam mar com ressaca.
Bate d’encontro às falésias, das pálpebras feito taipas,
E a lágrima qual marola, lavando a praia do rosto,
Espraia a orla dos lábios, cambiando da boca, o gosto...

 
Lá no Morro do Farol, na gruta da Aparecida,
Enquanto a chama desfaz, as velas oferecidas,
Meus lábios mussitam preces, que escapam guturais,
Clamando um corpo de volta, se não for pedir demais...


 Meus passos longos d’outrora, se fazem quase arrastados,
Os olhos pousam ao longe, onde o mar quer ter um fim...
Buscam o certo no incerto, já nem tão mais aguçados.
Confiante, fez-se morna, a esperança de encontrá-lo.
Vai e vem, feito marés, mas sem somar resultado. . .
Findou meu tempo de estar; nasceu outro, o de partir...
Zarpar águas d’outras plagas, singrar mares d’outras águas,
Cambiar a sina e a sorte, que o além há de provir...

 
Custou-me os olhos Xôôô!!! Égua, crer no que se assucedia. . .
Após tantos safanões, os gritos das gaivotas,
Confundem-se aos do capataz. . .
Ainda sem entender porquê me espancava o rosto,
Pelo topo da mangueira, riam rasgado, a peonada,
Quase em coro, gargalhada, enquanto eu limpava o barro
Que incrustrou-se pela cara. . .

 
Quando o sol esfria as brasas, ganhando entranhas do mar,
Recobro minha consciência; dou-me conta do presente. . .
Ainda vislumbro ao longe, meu pampa com seu poente,
E a beleza do seu porte. . .

 
Então, c’o sinal da cruz, agradeço ao “Patrão-Velho”,
De posteiro minha sorte, e deixo prá outra olada,
Esta mudança sonhada, pro nosso Litoral Norte. . .