Das Marias que Ficaram

João Carlos Fontoura

 

Quando a tarde adormece nos braços da noite

e as vacas mansas vêm berrar na frente da estância,

no peito de uma mulher solita

berra uma tropa de saudades...

 

No rosto que fora tão lindo quando jovem,

o tempo, lavrador a esmo,

vem abrindo sulcos

como arado em terra bruta.

 

E as mãos macias,

que sovaram pão e lavaram roupas,

o cabo do machado e da enxada,

transformaram em ásperas garras

para a lutado dia a dia

no rancho onde está só.

 

O marido...

Os filhos...

Partiram para a luta,

sem lanças nem garruchas,

cativados por sonhos ilusórios

de outras cabeças vãs,

perderam-se nos rumos

de um corredor sem alambrados

de uma cidade fria...

 

E assim, pouco a pouco foram deixando o campo.

Todos andaram no tempo

e pararam na vida...

e as almas que constituíam impérios,

que desmoronaram

ao terem deixado o imenso e verde dos campos,

para viver num mato de concreto

dessas cidades com cidadelas

e bairros de formigueiros humanos.

 

Mas lá no campo,

a cada final de tarde,

da janela do rancho,

uma mulher solita

dói-se ao lembrar.

Que nessa hora sempre os campeiros estavam de volta,

pra mais uma mateada de fim de tarde,

pois no galpão ainda permanecem

as vozes rudes,

contando de lidas e desafios de peleia

daquelas charlas campeiras.

 

E no mesmo instante

um tahã deixa o lagoão da frente

num vôo triste,

e suas asas parecem dois remos

de um bote negro,

num oceano sem rumo...

 

O horizonte dourado do por do sol

deixa a pampa mais linda...

e aos poucos

as galinhas se recolhem para o puleiro,

os cachorros cavocam

na raiz dos cinamomos

ajeitando a cama para a noite fria.

E a negra que é Maria,

junta graveto, faz fogo,

e ali mateia solita.

 

Na rude solidão do rancho,

nas loucas prosas,

pausadas por cantos de grilos,

um gato brasino dorme em seu colo

como se fosse um filho,

talvez,

o que partiu.

E o negro que fora

braço de aço pra lida,

deixou a voz num berro de touro

que estremece a noite grande,

rondada pelas lembranças

de uma mulher solita.

 

E são assim todas as noites

no santo rancho de Maria.

Aos poucos as ilusões vão se gastando

e a cama, cada vez mais fria...

 

E quando a barra do dia

desponta numa nova aurora

já a encontra de foguito aceso,

pois é ela quem tira o leite,

raciona os bichos

e varre o pátio.

Então durante o dia,

nas cinzas das lembranças,

brotam brasas de esperanças

de que os filhos e o marido voltem

e quando os quero-queros gritam

corre os olhos da porteira da frente

mas não é nada.

A estrada continua deserta

e a porteira fechada.

 

Trancam-se as retinas

nos olhos da mulher

que é mãe e esposa

e aos poucos morre solita.

E assim outro dia vai

e outra noite vem...

E por horas se pergunta:

O meu marido e meus filhos,

por onde andarão?

Ou quem serão?

 

Essa é a sina das mães

que respeitam maridos e filhos.

Mas que também amam os campos!

 

De já hoje os sonhos

são tentos de laço

que ninguém mais trança,

pois no fundo da invernada

falta o gado e sobra o pasto,

na alma sobra saudades

e falta esperança.

 

Nos alambrados

curvam-se os moirões

e a poeira do corredor

adormece nas juntas das cancelas

que continuam trancadas.

 

Na sanga, que a estia da ausência secou,

permanecem em suas barrancas

apenas um biguá, que quando abre as asas,

parece um velho angico solito na coxilha,

querendo abraçar o mundo.

 

E nesse rancho,

que fora de lida e vida,

na moldura do tempo

está,

como uma velha arrueira,

a velha negra de vigia

nesta paisagem

que recebeu apenas um nome:

Tapera

 

E ao vêla

nesse despovoado infinito,

uma lágrima ponteia o arrependimento.

mas agora

já é tarde demais para chorar.

 

Mas ainda há tempo de se perguntar

como e quando?

Os homens hão de saber

que a verdadeira razão de viver

não está no partir

e sim

no ficar.