PAYADA DO SAFENADO

 Jayme Caetano Braun

 

Pede licença tropeiro

Nada mais que um payador,

Curandeiro e domador

Do reduto missioneiro

E além disso- curandeiro

Da vivência campesina,

Maestros da medicina

Aqui nas pampas gaudérias

Nós ensinamos matérias

Que a cátedra não ensina.

 

Nessa vida de rigor

A gente fica mais rude,

Sem proteção á saúde,

Nem remédio contra a dor;

Ali não tem medidor

Para pressão arterial;

Ali não tem hospital,

Nem sala de cirurgia,

O galpão é a sacristia

E o bloco ambulatorial.

 

Foi assim- desde o início,

Da nossa gesta campeira,

Quando fizemos fronteira

No velho solo patrício

Peleando- meio por vício

No lombo da sesmaria;

A canha era anestesia

Fazendo pátria – a trompadas

E aprendendo nas carneadas

As noções de anatomia.

 

Verão – primavera- inverno

Ali não faz diferença,

Para curar qualquer doença

Cada gaúcho é um interno

Quem vive naquele inferno

Não se ausenta nem se acanha

Nas urgências de campanha

É rápida a cirurgia

Lá se estanca uma sangria

Com terra e teia de aranha.

 

O braço, a perna quebrada,

Todo e qualquer acidente,

Se atende imediatamente,

Sem anestesiar a indiada;

Faca sempre bem afiada

E a segurança na cura,

Talho grande se costura

Sem alteração nem teima

E – quando um cristão se queima,

Se mija na queimadura.

 

Remédios - não tem mistério

Na zona do pastoreio,

Aprendemos no rodeio,

A lidar com causo sério,

Naquele ambiente gaudério,

De horizonte e campo nu,

Qualquer domador xirú

Da nossa velha planura,

É mestre numa sutura

Com tentos de couro cru.

 

Existem- claro excessões,

Os magos das benzeduras

Que – as vezes- realizam curas,

Com jujos- com orações,

Ao tratar de corações

Não vão atrás de magias

Ali o índio se arrepia

A não ser que seja louco

Porque reza vale pouco

Se o caso é cardiologia.

 

O mal-estar, a tonteira,

Falta de ar- taquicardia,

De vereda se alivia

Dando um chá de laranjeira;

De cidró- de erva cidreira,

Temos um estoque farto;

O tiro- a facada- o parto,

Isso qualquer um medica,

Mas a cousa se complica

Com derrame- angina- infarto.


 


A morte não manda aviso

E chega sempre certeira,

Não perde pulo, a traiçoeira,

No seu ataque preciso

E – lembro neste improviso,

Que até passei um vexame;

Uma situação infame

Que compreender não destingo,

Uma vez matei um gringo

Para o salvar de um derrame.

 

Pois o meu atendimento

Veja só que mala sorte,

Para salva-lo da morte

Com sangria- no momento,

O mandei – sem sacramento,

Para a última viajada,

Tenho a mão meio pesada,

Se viu- depois do exame,

E o gringo, em vez do derrame,

Veio a morrer da facada.

 

Eu que ajo Poe instinto

Talvez pelo atavismo,

Nesse meu primitivismo

Lá no meu interior sinto

Que o coração é distinto,

Isso qualquer um descobre;

Coração é um órgão nobre,

O músculo mais perfeito

Que bate do mesmo jeito

No rico como no pobre.

 

Ele é o relógio da vida

Que, ao bater das pulsações,

Marca nossas sensações

Na estrada larga e comprida,

Com duração definida

É o que nós chamamos, sina,

Mas que um dia se termina

Por longe que o índio vá

E, as vezes, a gente dá,

O meu, eu dei pra uma china.

 

E, tive minha experiência,

Depois que vim pra cidade,

Causo sério, de verdade,

Quase me rouba e existência,

Com toda minha experiência

De curandeiro primário,

Um problema coronário

Do filho da Bossoroca,

Por pouco que não convoca

Meu agente funerário.

 

Levado a um pronto socorro

Ao qual tenho restrições

E, que não tem condições,

Nem de atender um cachorro,

Não sei como que não morro,

Maestros da medicina,

Tenho provas que o incrimina

E medica por palpite,

Confundindo com gastrite,

Um enfarto pós-angina.

 

Seis horas ali, penando,

Trancado naquele brete,

Com doses de tagamete

Que eles iam me injetando,

Compreendi, que ali ficando,

Meu destino ia ser bruto,

Me mandei pro instituto

Do coração, e aqui estou,

Mas amigos, se não vou,

Deixava a china de luto.

 

Que lindo entender da lida

Como esses homens entendem,

É até milagre que emendem

Uma linha já rompida,

Fazendo voltar a vida

A chama que se termina;

Isso é Deus que determina,

Só de lembrar me comovo

E assim, eu nasci de novo,

No efeito da eparina.


 

Nunca é bom esse namoro

Da morte que nos acossa

E nem milagre que possa

Salvar o índio mais touro,

Mas me livraram o couro,

Como quem benze uma íngua,

Já ia morrendo a míngua,

O payador do Brasil,

Isordil mais isordil

Plantado embaixo da língua.

 

Depois o cateterismo,

Uma espada na virilha

Do payador Farroupilha

Dentro do seu fatalismo,

Em completo imobilismo,

Preparado de antemão

Vendo na televisão,

Numa tela esbranquiçada

Aquela cinta prateada

No rumo do coração.

 

Vendo o estrago causado

Por cada enfarto traiçoeiro

No coração missioneiro,

Totalmente esburacado,

Destruído e necrosado

Dum jeito que dava pena

Ali o índio se apequena

Ande a fraqueza da vida

E fui levado em seguida

Para as pontes de safena.

 

Me serraram pelo meio,

Ali no osso do peito,

Não vi nada, mas suspeito,

Porque me encontrava alheio

Mas sei bem, já creio,

Que a cautela não é pouca,

A ciência, é uma coisa louca,

E não sei por onde andei

Até que enfim me acordei

Com um tubo enfiado na boca.

 

Não é brinquedo, sou franco,

Ouvia mas não falava,

Vi um grupo que me cercava,

Todo vestido de branco,

É pior que juro de banco,

A sensação que senti,

Me encontrava na UTÍ,

Me dei conta no momento

Meu primeiro pensamento

Era me mandar dali.

 

Mas esse é um caso pessoal,

Me perdoem o excesso,

Se neste tema eu ingresso

Sem ser um profissional,

Mas é uma visão geral

Do payador do rincão;

Se o corpo humano é a nação,

Com vida circulatória,

Pra mim que conheço a história

O Rio Grande é o coração.

 

Porque, desde que brotou,

Foi ponto de referência,

Controlador da freqüência

Do coração que pulsou

Ventrículo que mandou

O sangue puro filtrado

Ao pulmão pátrio sagrado,

Ligando veia e artéria,

Guardiões da estirpe da Ibéria

Do primeiro antepassado.

 

No  passado foi assim

Gravamos nos ditames

Com ameaças de derrames

E de enfartos que, por fim,

Curamos neste fortim

Onde crescemos peleando

De sentinela guardando

Como pastor e guerreiro

O coração brasileiro

Pra que seguisse pulsando.

 


Infelizmente hoje em dia

Periga nosso estandarte,

O perigo de um enfarte

Em nossa soberania,

Exige uma cirurgia

Muito urgente, no instante,

O nosso país gigante

Minado de obstruções,

Por um grupo de ladrões

Está a pedir um transplante.

 

O sistema vascular

Totalmente obstruído

Cérebro comprometido

Que já nem pode pensar,

Sem comer, sem respirar,

Quando vejo, me comovo,

Precisa um coração novo,

Aquele que a gente sonha

Que bata com mais vergonha

E tenha respeito ao povo.

 

O que fazer deste doente

Maestros eu vós pergunto

No bárbaro contrapunto

Do garrão do continente,

Tendo em vista que o paciente

Perdeu a soberania

Já não tem democracia

Mas a dúvida persiste,

Será que o doente resiste

Ao menos a anestesia?

 

Pra mim como curandeiro

Dum rancho da redução

Já cheguei a conclusão

Que o problema brasileiro

Não é falta de dinheiro

Mas muito pelo contrário,

É problema coronária

A crise dos três Poderes

Que esquecendo dos deveres

Se fartaram de salários

 

A terra continentina

Precisa nova confiança

Contra o conchavo que avança

Em nossa Pátria divina

E o payador se ilumina

No poder do pensamento,

Imaginando um invento

Que alcance logo sucesso

E se consiga um congresso

Que respeite o orçamento.

 

O povo é mesmo que tropa

No rumo do matador,

O eterno sofredor

Que o próprio regime dopa,

Carnaval, novela, copa,

Minha alma se compadece

E eu Amim se me parece

Que uma grande lição fica

Quanto mais se sacrifica

Mais o meu povo empobrece.

 

Eu faço essa confissão

Aqui da terra farrapa,

Se me arrancarem do mapa

Fica um buraco no chão

Porque calcei o garrão

Pra um tiro de volta e meia

Não me assusta cara feia,

Tampouco falta vergonha

E duvido que alguém ponha

Uma idéia na cadeia


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