Por Falar em Cusco

           Hugo Ramirez


Por falar em cusco, amigo,
vou lhe contar uma outra
que me aconteceu, um dia,
quando eu andava de potra...
nesse tempo eu era moço,
índio largado e buenacho,
trazendo o laço nos tentos
e a sorte no barbicacho.

Vivia toureando adagas,
montado no meu lobuno.
não havia um só bochincho
em que estivesse reiúno.
Éramos três só no mundo,
meu
bagual, meu cão e eu:
Três corpos e uma só alma
que nada tinham de seu.

Certa feita... maldição!
Foi praga de louve-a-deus...
caí num jogo de tava
para desgraça dos meus.
primeiro, foram as pilchas
logo, o lobuno faceiro
e o cusco... fiquei de tanga
sem cão, cavalo e dinheiro!

Fui perdedor sem revancha
para um comissário gordo
que era raposa fingida
nas fracas asas de um tordo.
Me enleei naquela... sem nada,
sem ter sequer um tostão,
fui saindo... quando vi,
junto a mim, meu pobre cão.

Ele me olhou de viés,
como quem não acredita,
e eu me vexei, lhe confesso,
da vergonha e da desdita.
Nisto, um capanga do tal
que me ganhara a bolada,
chegou perto do animal
e o escorraçou a patada...

Estava tão abombado
que nem reagi sequer...
não surraram o cusco
por causa de uma mulher.
Ela chegou, mui lampeira,
E foi gritando, no mais:
- Chega! Pelaram o taura,
Bater no cão é demais! -

Parece até um milagre,
não entendo nem agora.
o comissário e os capangas
montaram... foram-se embora!
fiquei postado na cancha
vendo-os partir... o cachorro
troteou largando foguetes
até sumir da visão...

Tapejara e despilchado,
sem ter nada e rei do pago,
(pois ninguém é mais senhor
do que virar índio vago...)
gaúcho a pé e sem cusco,
sem ter plata na guaiaca,
fiquei como boi castrado
que os outros confundem com vaca.

Andando, a garrão, no brete,
fui dar no rincão das flores,
onde as mulheres sem dono
fazem leilão dos amores.
Uma chinoca lindaça,
de negra trança comprida,
de pena, me pos quebrando
resgatando minha vida...

No cabresto dos seus olhos,
fui tironeando, a lo largo,
quando um paisano me grita:
- Esse gole é meio amargo.
E copo que já tem dono.
Bebida do comissário...
Quem avisa, amigo é...
Não vá se fazer de otário.

Enquanto o ouvia, escarceava,
alçado, direito ao quarto.
Afinal, por muito menos,
qualquer um ficava farto.
o tal mandão comissário
já me ganhara o cavalo
e o cão... mas, quanto à chinoca...
Só me faltava esse pialo!

Deixa estar, falei comigo,
tudo na vida tem fim.
se agora arrepio atoa,
não sei que será de mim...
o melhor é ficar firme,
depois... a china me agrada
e eu nunca refugo aposta...
o resto é convers fiada!

Nos braços da china flor,
a noite não teve trégua...
como pastor me senti
amadrinhando uma égua.
chegou um dia e mais outro,
uma semana... E, depois,
o tempo foi esquecido...
não passou pra nós dois!

Por causa desse rabicho,
quase me vou, nem lhe digo!
me pegaram de garrucha
e eu vi de perto o perigo.
Acertaram na morocha
que ali no mais, toda exangue,
foi corcoveando em silêncio,
até se afogar no sangue!

Quanto a mim, no soflagrante,
dei um passo para a frente.
pelo menos na peleia,
ia morrer como gente!
Me via no campo santo,
nos sete palmos de chão,
quando meu cusco ruano
dá um bote na escuridão!

Santo Deus!Estrameci...
Parecia um lobisomem
com seus colmilhos grudados
no pau de fogo do homem!
E veio o estouro... Chô Mico!
a morte bem rente andou.
Senti pelo pelo... E o meu cusco
ai no mais estrebuchou...

Ao mal pagou com o bem,
esqueceu a ingratidão...
Se foi com o novo dono,
foi... Farejando a ocasião!
E esse momento chegou,
que eu tinha era jeta mesmo...
Todo esforço que eu fazia
era me esforçar a esmo.

Graças ao cão me salvei.
Então, criei alma nova
e atropelei todo o bando,
de mão limpa... ! que sova...
Nem era gente, que o causo
era mesmo de assombrar...
Mas venci... E hoje o meu cusco
anda no céu, a rondar...