EROSÃO

Guilherme Collares

(Inspiração e Homenagem a o poema “Retrato”

do imortal Antônio Augusto Ferreira)

 

- Tenho a impressão que minhas botas não conhecem mais meus pés! ...

 

... não estes meus pés de hoje

- de amaciar chinelas e sapatos ­–

mas sim meus velhos pés:

 

Aqueles que sabiam de mangueiras, no seu mister de irmãos da pedra-­moura ...

... aqueles que sabiam de cercados

- como naus singrando a terra preta ­nessa eterna mortandade dos arados, renascendo em cada sol de espiga ­loura-

loura ...

... aqueles que ainda trazem nos garrões os sulcos esculpidos dos caminhos

e que eram couros de anca desafiando as picanas inclementes dos espinhos.

 

- De fato:

estes pés já não conhecem nem repartem

do universo atemporal de minhas

botas ...

 

Estas botas riscadas das esporas

- talvez as mesmas do "Retrato" do Tocaio -

que, de tão vaqueanas, até parecem filhas

das botas de meu pai ... ou meus avós ... ... que vestiram estes pés e estas cambotas

que me trazem de família - de tão tortas

- esta eqüestre herança

 ... que restou em nós.

E estas pobres mãos? ...

... não sabem mais de cordas e de cabos

e nem tocam sinfonias com machados nos teatros de lenheira e picador...

... não sabem mais de bolhas e de calos

e de socos em queixadas de cavalos ou de cavalos e tesoura e arreador...

... não sabem mais de laços e de rédeas

ou de touros chimarrões e de baguais ...

 

· .. são vaqueanas de teclados e encordoados

e canetas e botões ... livros, jornais ...

· .. são escravas a gritar por alforria

nos grilhões da palavra e da poesia, neste mundo de progresso e de papéis ...

 

... foram feitas - estas mãos - do mesmo barro

que compõe e que entranhou-se nos cercados

destes sulcos que restaram nos meus pés.

 

E pés e mãos e botas ...

· .. são, enfim, todos iguais

à alma de quem viu suas andanças: sulco-a-sulco, estrada e sonho relegada a um novo rumo de imprecisas caminhadas

e um abandono de andar longe ...

 .. nas lembranças.