MÃE GAÚCHA
Glaucus Saraiva
Cantando: Bicho Tutu
de
trás do murundu,
pegou
no sapinho
comeu
com angu.
Aninhado no teu colo
- plumas de amor e doçura -
minha mãe, quanta ternura
suguei, mamando em teu seio?
E o teu canto de permeio
com arrulhos de pomba mansa,
me ensinou, desde criança,
as Lendas do Pastoreio:
Tinha mula-sem-cabeça,
Boitatá e caipora...
Lendas de Nossa Senhora
com os bichos mais conhecidos
e tesouros escondidos,
Lobisomem, urutau...
Aprendi a cravar um pau
no recavem do tinhoso
se perdia, desgostoso,
as minhas coisas tão belas,
ou então, prendia velas,
com a maior devoção,
no topo de moirão
ap Negro do Pastoreio
E aquele infantil rodeio
singular, estranho e vago,
de cantiga, história, afago,
de encantamento e de bruxa,
formou minh'alma gaúcha
enraizada
no pago.
Cantando: Songa Lionga
me
leva no carro,
agora
não posso
que
vou carregado,
leva uma canga,
leva
um arado,
levo
um cusquinho
de
rabo cortado.
Cantando ensinava coisas
de amor às lides campeiras.
Na minha infância tambeira
amei meu gado de osso,
meu cusco de rabo grosso,
meu cavalo malacara
- puro-sangue de taquara -
com rédeas feitas de tira.
Tive meu laço de embira,
boleadeiras de sabugo...
e tudo o que era refugo
- corda velha, carretel -
para mim era o plantel
dos meus tesouros meninos
que apartava, teatinos,
em rodeios pelo chão.
Depois guardava o florão
de minha tropa sem dono,
debaixo do cinamomo
ou num canto do galpão.
Cantando: Lá, ra,ra,ra
onde
está papai...?
dorme,
filhinho,
morreu
no Paraguai.
Também morri muitas vezes
em peleias "faz de conta",
atravessado na ponta
de um talo de jerivá,
que nas guerras de piá
eram espadas de fama...
De velhas guardas de cama.
Tirei cano pra trabuco
que era o truco e o retruco
pra um guri que não se agacha,
Depois um par de borrachas
macias e emparelhadas,
forquilha bem aparada
de pitangueira ou camboim,
mais um courinho e, por fim,
estava pronto o bodoque
para completar o estoque
de espada, trabuco e lança
para o caudilho criança
que havia dentro de mim.
Cantando: Dorme,
filhinho,
dorme,
meu amor,
que a
faca que corta
dá
talhos sem dor.
Pobre velha, te esqueceste
que a faca dos desenganos
- chairada ao correr dos
anos,
dói muito cortando a gente;
retalha a alma inocente,
sangra fundo o coração;
deixa depois, pelo chão,
a branquejar pela estrada
a ossamenta desgarrada
da infância, terna ilusão.
E aquele bicho Tutu
tão feio, é o nosso destino...
Pegou o pobre do menino
que de piá virou moço,
extraviou o gado de osso,
matou seu cusquinho amigo,
e, de castigo em castigo,
foi roubando aquele céu
feito de sonho, mundéu,
arapucas, fantasias,
de pilão, cinco-marias,
trabuco, bulita e fundas
e até das valentes tundas
por fugir pras pescarias.
Cantando: Late, late,
cachorrinho,
lá pro
fundo do quintal,
não
acorda meu filhinho
que
passou a noite mal.
Mas o latido do tempo
me acordou daquele sonho...
agora vejo, tristonho,
que tudo aquilo acabou,
o lacinho arrebentou
com o tironeio da vida
e a boleadeira querida
feita com tanto carinho,
perdeu-se, com o sapinho
que o Bicho Tutu comeu.
Tudo desapareceu
de minha estância mirim!
Campeio e vejo que enfim,
até o pingo de taquara
se perdeu pela coivara
que o destino abriu em mim.
Das velhas caixas de "fósfro!
já não faço mais gaiola
pra encerra
toca-viola
e ouvir singelas cantigas,
Não mais entendo as formigas
conversando nos carreiros
e nem faço parelheiros
dos carrapatos pançudos;
já não cango mais cascudos
para infantis carreteadas,
nem me interessam caçadas
de vaga-lumes matreiros,
pra fazê-los de candeeiros
dentro de um copo emborcado.
Não fico mais ao teu lado
te bombiando amassar pão
e nem te peço, gritão,
"Mãe
me faz um marreco,
um jacaré e um "bunecro",
com os "zoinhos" de feijão?"
Cantando: Dorme,
filhinho,
que o
bicho aí vem
papai
foi à caça,
mamãe logo vem.
Espero, sim, mãe, que venhas
me embalar no último sono
que se dorme no abandono
de um berço negro e prateado.
Quero te ouvir a meu lado
Cantando - "Dorme,
filhinho"
e não estarei tão sozinho
nessa última viagem,
nem me faltará coragem
para o momento tão sério
em que deverá um gaudério
enfrentar Nosso Senhor,
pois terei o teu amor,
o teu amor, mãe querida,
o único amor na vida
que redime um pecador.
Cantando: Senhora Santana
na
beira do rio,
lavava
os paninhos
do seu
bento "fio".
Canta pra mim, minha mãe,
canta o teu canto divino,
pois ainda sou teu menino
velho, triste e abichornado.
Apesar dos meus pecados,
das rugas que tem meu rosto,
da tropilha de desgosto
que entordilhou meu cabelo,
tua voz é o meu sinuelo
de pureza e redenção,
e o teu canto, a extrema - unção
que absolverá este réu.
E eu entrarei lá no céu
repontado ao teu cantar
e até a Virgem há de achar,
mimando o Menino Santo,
que o céu terá mais encanto
com tua canção de ninar.
Cantando: Bicho Tutu
detrás
do murundu,
pegou
nos meus sonhos
e
comeu com angu.