Remanescências
Eron Vaz Mattos
A noite vem rascunhando
Algum esboço de lua
Na tela escura do céu;
Ouço o canto dos banhados
E das lagoas soturnas,
Resvalando no sossego
Pra despertar nos acordes,
Galponeiras vibrações
De largas rondas noturnas.
Esvai-se a vida ao tranquito,
O mate hoje se alonga
E as pretensões do silêncio,
Tisnando velhos recuerdos
Empastiçados de histórias,
Se debruçam na milonga.
Por olhos e pensamentos,
Desprevenidos e nús,
Alcanço algumas estrelas
Metidas pelas clareiras
Entre os galhos multiformes,
Do chapeuzito ladeado
De copa alta do umbu.
Um meditar pega a estrada,
Se vai às timbas do tempo
Farejando a trajetória
Que vem de eras tão longes,
Como sermões repassados
Por mandamentos timbrados
Nas oratórias dos monges.
Vislumbro remanescentes
Dos meus primórdios terrunhos
Plasmados pelos fogões
- Ensimesmando silêncios -
nessas visagens tão boas;
os sombreiros temperados
por mormaços e serenos,
rigor de estradas e luas
e o galopear das garoas.
As alpargatas sebrunas
Meio empacando ao andar;
Bengalas de sarandi
Compensando alguma falta
Que o corpo velho, judiado,
Não conseguiu reparar,
O que colheu dos invernos
E dos baraços que a vida
Estendeu pelo caminho,
Reflorescendo esperanças,
Para poder sementar.
São desses que ocupam catres
Sob as coberturas toscas,
De pararem ventos brabos
E os temporais de aguaceiros
Das invernias gavionas;
Agüentando o seu viver
No esmeril do destino;
Equilibrando os seus dias
Encrinados nas lembranças,
Simpatias ancestrais
E nos jujos das cambonas.
Homens que vieram de ontem
Mapeando, a cascos, a Pátria
Com séculos de andar ...
Conseguem, por trás dos
olhos,
Desvendarem quase tudo,
Bem antes de acontecer
E muito adiante do olhar.
Desses que sabem as horas
Atravessando o cavalo
Pelo tamanho da sombra
Que se projeta no chão;
E até em pagos ajenos,
Cruzando noites escuras,
Dessas que escondem a
boieira,
Sabem bandear os arroios
Sem que lhe alcance a carona,
Só pelas barbas dos matos,
Os recortes das barrancas
E o marulhar das cachoeiras.
Conhecem cada cavalo
Já no entrar da mangueira
Quando a tropilha é parelha,
E descobrem caborteiros,
Boleadores e velhacos,
Ao enfiar o buçal,
Só pelo jeito na forma
E o movimento da orelha.
Desses que sabem do tempo
Pelo brilho das estrelas
Pelechando em noites boas,
O movimento dos bichos
E o canto da saparia
Nos aguapés das lagoas.
Que falquejaram garrões
Calçando botas de potro
E o ferro das nazarenas
Para empurrarem seus fletes,
Melena e poncho em bandeiras;
Enlutando, tantas vezes,
Os sentimentos teatinos,
Adelgaçando os destinos
Para firmarem fronteiras;
Guiando, sempre, os atalhos
Nas luzitas do cruzeiro
E o renascer das boieiras.
Por isso que enxergam tudo
Por um olhar no horizonte,
Sem levantarem dos cepos
Nem arredar do galpão
Onde hibernaram os ressábios
Que juntaram nos arreios
Plantando exemplos e rastros
De pingos e arreadores;
Definindo para sempre
As trajetórias das tropas
E os rumos dos corredores,
Sonorizando as distâncias
Nas lonjuras estiradas,
Pelos cincerros ponteiros
E o estalar das peçunhas
Alimentando charqueadas.
Na gestação da Província,
Paravam xucros e malos
Nas sogas das boleadeiras
E nas ilhapas dos laços;
Trazendo para os rodeios
- Enleados nas cadenas -
A força dos cinchadores
E redemoinhos de braços,
Os franqueiros chimarrões
Que depois gastavam jugos,
Num vai-e-vem mosqueador,
Transportando leivas brutas,
Pelas rastas e carretas,
Abrindo as primeiras sendas
Pra construir as estâncias.
E, nas primeiras estradas,
Repisavam sonhos largos
Ao lerdo tranco dos bois;
E os mesmos sonhos judiados
Se levantaram dos pastos,
Mesclados de terra e suor,
Naquelas paisagens nuas,
Tomando forma de rancho
Com varas de tarumã
Abraçando o santa-fé
Com braços de loncas cruas.
As atitudes dos catres
Tropearam gens para diante,
Fazendo nascer as fraldas
E as canções de ninar
Que as ternuras embalaram
Decênios, uns após outros;
Misturando choramingos,
Gargalhadas de barreiros
- Alertas de quero-queros -
Com zum-zuns de marimbondos,
Os ponteados das violas
E os relinchos dos potros.
As vertentes desubraram
Nas bacias das cacimbas
E transbordaram por elas;
A pipa d´água sorvia
A melhor seiva da terra
Se arrastando nas canhadas,
Rumo às sombras das ramadas
Para saciar as gamelas.
As violas subiram ganchos,
As chinas ganharam catres;
E os cupins do campo aberto,
Que tropeçavam boleadas
Velozes, em patas buenas,
Alisaram-se nos pisos
Colhendo passos macios,
A florescência das chitas
E sinais de nazarenas.
Por isso, quando maduram
As pretensões do silêncio
Nessas rondas fogoneiras
- Tisnando velhos recuerdos
Empastiçados de história -
Estes acordes despertam
Nos mates das noites longas
E os meus primórdios
campeiros
Se debruçam nas milongas !