DESCENDÊNCIA

Elton Saldanha

Eu sou Maria Pequena,

Maria Morena,

Maria do Povo.

Eu sou da terra do ouro

eu sou das pedras de Lavras

ali da Vila dos Corvos.

 

Dizem que por 1800,

um conhecido fazendeiro,

das pontas do Camaqüã,

ao andar pela Bahia,

trouxe de lá uma cabrocha,

filha de negro e mulata,

da pele rosa maçã.

 

Ao chegar aqui no pago,

de vereda um dos escravos

quis se arranchar com a morena.

Assim se deu tal cena,

do tal escravo campeiro

e a princesa de olhos verdes,

com perfume de açucena.

 

Pra festejar em seu campo,

a abolição da escravatura,

essa distinta figura,

Amadeu Teixeira do Canto,

doou para seus dois escravos,

com mato, água e gado

uma sesmaria de campo.

 

Conforme o tempo passava,

ali na herança quilomba,

a negrada se arranchava

na vila de uma cor só.

Parece que os deserdados

se juntam pra ser lembrados.

se abraçam pra ter amor.

De branco, naquela vila,

os gansos em volta do rancho.

Volta e meia algum carancho

por ali tirava o freio.

Devotos de Santo Onofre,

alguns, até descendentes

do Negro do Pastoreio.

Um forno véio de barro,

de uso igual na comuna,

alguma safra reúna

de igual a igual pros irmão.

Se uma fornada queimava

e o pão ficasse mui preto

diziam que era pão santo,

diziam que a cor do povo

tinha passado pro pão.

 

Quando as moças se enfeitavam

querendo arreglar os coeiros

se matavam algum terneiro

e enfeitavam o rancho de flor.

Sempre havia uma matrona

com baldas de feiticeira

prá emparelhar às solteiras

no ajoujo xucro do amor.

 

Se campeava algum gaiteiro,

pois negro daquelas bandas,

tinha que ser peão de tropa ou trovador,

era ginete ou gaiteiro, era esse o mandamento.

Tomavam canha de guampa

e retornavam o pampa

nos bailes de casamento.

E a alegria amanhecia

nos casais pelo terreiro.

 

Tinha um esteio no meio, aqueles ranchos,

e, se dançavam rodeando.

Volta e meia algum fulano

se perdia na conduta

e atropelava a razão

e relembrava a quizília

e amanhecia a pandilha

no floreio de facão.

 

A crenca do poviléu

da senzala libertária,

apesar de serem párias,

não eram homens ateus

e rezavam pelos cantos

prendendo velas pra santos

e dando graças a Deus.

Branco, lá, não tinha vez

na tal Vila dos Corvos,

quando vinha do povo

a bandeira do divino

e o povaredo de atrás

ganhava o pão dos inocentes

e ali, no meio dos crentes,

se algum branco aparecia

passava naquele dia,

pois o estandarte da pomba

era a bandeira da paz.

 

Depois veio o aluvião,

ouro das minas do rio

daquelas bandas de Lavras

e, o negro que já era pedra

se foi buscar seu quinhão.

Ele era a própria jazida

naqueles ricos confins,

pois era preto por fora,

mas era ouro por dentro,

nos veios do coração,

porque o ouro nasce assim.

 

Matreiros e retovados,

caborteiros e arredios

a fome, a raiva e o frio,

maneia de angico e tronco

pra quela gente esquecida,

diz que se não mata engorda

e quem toureia com a morte

se escapa, fica mais forte

nas campereadas da vida.

 

Já se foi a escravatura

e até o ouro se foi,

mas tudo tem um depois

um descendente, um após,

vou honrando meus avós

daquela Vila de Lavras.

 

Vila dos Livres, Vila de Luz

lhes juro que vale a pena

nascer Maria Pequena

e levar por onde eu for,

a escravatura de amor

por meu Rio Grande do Sul