Os Olhos do Negrinho
Dimas Costa
Em tempos que já vão longe,
- por culpa do Grã-senhor -
o mundo era um carneador,
- assim na comparação -
coberto do sangue rubro,
vestido do corpo vivo
do negro, pobre cativo,
nas garras da escravidão!
Vinham barcos de além mar,
galopeando pelas águas,
trazendo dores e mágoas
num bojo infecto e imundo!
e despejavam nos campos
dos potreiros do Brasil
que se fez, também covil
do maior crime do mundo!
Nosso Pampa, por desgraça,
foi cúmplice desse crime!
Hoje, no entanto, redime
a culpa dessa maldade!
pois se abriram para as raças,
todas as porteiras do pago
que cultiva, com afago,
a mais pura liberdade!
Mas foi nesse triste tempo
que nasceu o Benedito.
Um pobre escravo, um negrito
que morreu inda na infância.
- Nasceu não... surgiu no mundo,
como um traste sem valor,
e por ordem do “senhor”
foi crescendo e ficou sendo
o mandalete da estância.
O pobre do Benedito,
era pau prá toda obra!
Mais ruim que carne de cobra
para ele, era o “Senhor”:
- Benedito: busca água!...
- Benedito, espanta o gado...
- Benedito, desgraçado!
- Negro ordinário... estopor!
E logo o relho cantava
e o Benedito gemia!
Apanhava e não sabia
porque razão, o coitado!
E ficava ali, tremendo,
fitando o “Senhor”, sestroso,
meio gemendo... choroso,
os olhos grandes... parado!
- Benedito, fecha os olhos!
- Não me olhes desse jeito!
- Toma, negro, tem respeito,
não olhes assim, prá mim!
E o relho vinha de novo,
lanhar o corpo flaquito!
- Fecha os olhos, Benedito!
- Não me olhes, negro, assim!
E o negrinho se afastava
com o olhar escancarado...
Pois nem o medo, danado,
daquele homem feroz,
fazia o negro desviar
aquele mirar, profundo,
que penetrava no fundo
da alma de seu algoz!
- Benedito! Fecha os olhos!
- Não me olhes desse jeito!
O rancor e o despeito
deixavam o “Senhor” aflito.
Pois no fundo desse olhar
havia um triste segredo...
E o “Senhor” já tinha medo
dos olhos do Benedito!
À noite, quando o negrinho,
depois que a lida findava,
corpo moído, se deitava
no chão duro da senzala;
a lua vinha de manso,
furar a palha do teto
e o negro, com muito afeto,
ficava, rindo, a fitá-la...
E abria mais os olhos
para beber o luar,
que nunca ouviu reclamar
por ele o mirar assim.
E feliz, naquele instante,
o negrinho, tão pequeno,
fechava os olhos, sereno,
e adormecia, por fim.
- Benedito, fecha os olhos!
- Desvia, negro, esse olhar!
- Pois hoje tu vais fechar
para sempre, desgraçado!
E o monstro humano bateu
no negrinho, sem cessar,
até o pobre tombar
aos seus pés, ensangüentado!
- Fecha os olhos, Benedito!
E no corpo, já exangue
arrancava carne e sangue
sempre a bater, o maldito!
Mas o olhar do negrinho
mais e mais se escancarava
e louco, o “Senhor” gritava:
- Fecha os olhos, Benedito!
Até que um negro silêncio
susteve o braço assassino.
Pois a alma do menino,
escravo da negra sorte,
fugiu por fim, já cansada
de tanto o corpo apanhar,
e feliz, foi se entregar
aos braços livres da morte!
E o olhar do Benedito
nem assim não se fechou.
Morto, embora, ali ficou
mais e mais escancarado!
E o “Senhor” ao ver aquilo,
perdeu a luz da consciência
e se arrojou na demência
a gritar desesperado:
- Benedito, fecha os olhos!
- Negro ordinário, maldito!
- Benedito, fecha os olhos!
- Fecha os olhos, Benedito!!!
E o olhar do Benedito
ficou grudado no céu.
E uma noite, por entre o véu
da neblina do infinito,
duas estrelas surgiram
a brilhar, fitando o mundo
com um olhar grande, profundo,
como os olhos do negrito...
E hoje que ainda existe,
na consciência universal,
a eterna nódoa do mal
daquele crime maldito;
quanto homem, que ao te ver
o par de estrelas brilhar
não tem ganas de gritar:
- Fecha os olhos, Benedito!!!