A ÚLTIMA CARRETEADA
Cyro Gavião
Por entre sombra e mistério,
Como arremate na dor,
Dorme um velho cemitério,
Na volta do corredor.
Morada eterna de guapos,
Campo Santo da querência,
Que, na sua decadência,
Vai implorando uma prece...
Por Deus, que até me parece,
Ao vê-lo nesse abandono
Rebenque velho sem dono,
Que, na tarimba, se esquece.
Dizque, aí, alma penada
Dum que morreu na peleia,
Quando chega a noite feia
E a casurina
assobia,
Dizem te, Virgem Maria!
Que junto a um cusco se emperra,
Na sepultura de terra,
Que se plantara, outro dia.
E dizem qu’êsse
guaipeca,
Crioulo velho sem raça,
Quando uma carreta passa,
Choramingando, na estrada,
No portão dessa morada,
Se planta uivando o sotreta
Até sumir a carreta
Pelas dobras da canhada.
Parece ver, na carreta,
De tranco lerdo e pesado,
Recordações do passado,
Viajando de sul a norte...
E o pobre cusco
sem sorte,
Que vira enterrado o dono,
Nunca mais tivera sono,
Nessa vigília da morte.
Quantas vezes, carreteando,
Na sombra dum espinilho,
De travesseiro o lombilho,
Sesteava seu companheiro...
E o cusco
concho e faceiro
-Que mora na sepultura -
la lambendo a
gordura
Dum resto de “carreteiro”.
Velha amizade crioula,
Que se fizera ao relento!
não tinha chuva nem vento,
Que separasse esses dois...
E lindo era ver, depois,
O guaipeca
a trotezito
E o dono, sempre no grito,
A conversar com os bois.
Faz tempo, numas carreiras,
Quando sesteavam por perto:
“O zaino vai ganhar certo”,
Disse uma china de trança,
Que fez uma
tal lambança
Pras bandas do carreteiro,
Que se espetou, no salseiro,
Na adaga de um tal de França.
No meio do entrevero,
Viu-se o cusco
atrapalhado.
O seu dono ensangüentado,
Por certo que estava mal...
E de amizade em sinal,
Por entre a roupa em retalho,
Lambeu-lhe, no peito, o talho,
Sem saber qu’era fatal.
Houve velório e cortejo,
Sem ladainha e sem fala.
O morto, no próprio pala,
Fez, na carreta, a viajada.
E o cusco,
sem saber nada,
Sem conhecer um tal rito,
Continuava a trotezito,
Na última carreteada.
Depois do sepultamento,
Inda escarvara
na cova:
Não conhecia essa nova
De lhe plantarem o dono...
Por isso, perdera o sono,
Nessa vigília da morte,
Pra que o amigo sem sorte
Não ficasse ao abandono.
Por entre sombra e mistério,
Como arremate na dor,
Dorme um velho cemitério,
Na volta do corredor.