AUTOS 1052/77 À JUSTIÇA
PÚBLICA
Colmar Duarte
Pedro
Veloso está preso.
Sentado
à um canto da cela
rumina
recordações...
...
que é verdade que às dez horas do dia 15 de outubro...
Na
sala grande do júri,
dos
olhos de toda a gente
transparece
acusação
...
branco, brasileiro, viúvo, cinqüenta anos, trabalhador rural...
Sobre
a parede, ali em frente,
estaqueado
por três pregos,
pende
um homem de uma cruz...
...
que reconhece esta arma como sendo a encontrada em seu rancho...
Assassino
sanguinário!
Vai
a voz do promotor
pedindo
reparação
à
sociedade ofendida...
Mas
quem saberá de ranchos
nesse
tribunal povoeiro,
onde
seu traje campeiro
parece
rude e estranho
aos
costumes dos demais
Em
pé, no centro da sala,
golpeou
seu peito a sentença:
dez
anos de reclusão!
Nada
mais ouviu depois...
Sobre
a parede, ali em frente,
um
homem morto na cruz,
a
sala cheia de gente e ele só...
As
algemas, os fuzis...
as
grades cortando os passos
e o
tempo para pensar.
"Eu
nasci no Touro-passo
me
criei no Aferidor
sentei
praça no oitavo
não
quero ser desertor..."
Carregava
consigo essa quadrinha
quando
fora pelear longe dos pagos.
Quando
a guerra, cruel e insaciável,
exigia
sangue de outros povos
em
holocausto à ambição do homem.
O
mar lembrando os campos da querência,
a
farda em vez da roupa campeira;
a
morte perdurada nas granadas
parecendo
inocentes boleadeiras;
o
batismo de fogo das peleias
no
mais pagão altar de sacrifícios,
das
montanhas desciam como lava;
os
obuzes varrendo gente e neve,
o
terror animal saltando aos olhos
e a
metralha esbanjando carne e sangue.
No
festim da chacina irracional
o
desespero... a neurose... os mutilados
enchendo
os hospitais, na retaguarda.
E
na frente o revide incentivado:
matar!
matar! matar!
Quando
a guerra acabou, a volta aos pagos.
As
fanfarras às glórias conquistadas.
Nas
medalhas, o reconhecimento
à
bravura nos campos de combate.
Medalhas
por matar!
Por
matar gente às vezes indefesa e inocente,
jogada
numa guerra de outra gente!
Como
entender?
Como
entener estas razões da guerra,
que
menosprezam a moral campeira,
se
se criara a curar bicheiras
e a
socorrer os que ficaram guaxos?...
Como
entender a glória conquistada
por
quem mata ou quem morre,
simplesmente
porque fala ou se veste diferente,
se
se criara nos galpões de estância
entre
pretos, mulatos e estrangeiros,
beijando
a mesma bomba, sorvendo o mesmo mate!
Como
entender a escala de valores
baseada
na raça, credo ou vestimenta,
se
se criara neste pampa vasto
vendo
os bichos em paz e harmonia
mediando
a mesma água e o mesmo pasto?
...
e as medalhas de reconhecimento
da
mesma sociedade, ora ofendida
porque
matou pra defender seu rancho,
ninho
dos piás que se criaram guaxos
peleando
contra a sorte, numa guerra
que
é sua e não foi feita oficialmente.
"Eu
nasci no Touro-passo
me
criei no Aferidor
sentei
praça no oitavo
não
quero ser desertor!"