“REDENÇÃO”
Carlos Omar Villela Gomes

 


Domingo ensolarado neste outubro febril
Onde caminho sem pressa, despretensiosamente,
Ou melhor, com a mais singela pretensão
De quem, apesar de interiorano,
Se fez mais um semblante nesta imensa capital
E agora ruma, peito aberto, filha no colo,
Pra o coração verdejante do Parque da Redenção.

Dou uma volta no Brique, olhando as tralhas expostas,
Que se ofertam aos que cruzam,
Qual dançarinas de ontem em franca prostituição,
Pois atrás de cada tralha, de cada móvel antigo,
Existe um tempo perdido
Com nomes, rostos, vontades e desejos esquecidos,
Sendo aos pouquinhos, vendido
Sem pena nem compaixão.

Sol a pino nos judiando no passeio familiar...
A água quente do mate a muito deixou saudade,
E pra esta sede que invade, uma bebida gelada
Faz a alma refrescar.
Procuro na volta alguma placa ou painel
Com uma certa e inevitável inscrição em letras garrafais,
E também, inevitavelmente, a encontro em um carrinho,
Forma de lata, vermelho, parado na Redenção.

Num repente me secou a boca, muito mais que a sede,
Uma cena estranha que vidrou meus olhos
Na manhã de sol...

 

Junto ao carrinho de carcaça rubra
Um gaúcho sério marca sentinela, quase a meditar.
O olhar de potro, a feição trigueira e um ar saudoso
De buscar verdades muito além daqui...
A melena moura pelas geadas brabas
Que passou na vida;
Braços ainda firmes e um jeitão de taura,
Parecendo a essência do Rio Grande antigo
Personificada nesta capital.

A bombacha gasta, par de botas velhas,
A guaiaca lisa e um chapéu surrado
De “guentar” tirão...
Lenço maragato meio desbotado,
Completando a estampa que figura o campo
Entre a multidão.

Quantos tombos feios já levou do mundo
Esse desgarrado?
Quantas lutas rudes já travou co’a sorte
Esse cidadão?
Pra que hoje, quieto, junto ao monumento
Deste parque verde,
Empurre o carrinho a vender refresco
Pra população?

Analiso o rosto, não encontro réstia alguma de derrota,
Ao contrário, cada traço representa um jeito manso
De lidar co’a vida e de seguir adiante,
Pois apesar de exilado, é gaúcho sim, e dos buenos,
Daqueles que o tempo antigo talhou à mão
No mais puro cerne da dignidade...

Daqueles que a palavra dita vale mais que escritos
Com assinaturas e consentimentos de algum tabelião.

Chego ao seu costado, num instinto forte
De pontear conversa;
Peço um refresco, acarinho a filha
E puxo uma prosa qualquer:
E o tempo, e a vida, e a eleição?
Será que chove no correr dos dias?
Perguntas cheias de intenções vazias
Que o pensamento foi campear além...
Como a perceber minha curiosidade,
Abre um sorriso de clarear a alma de qualquer cristão,
E me responde em palavras ricas
Às perguntas vagas, que por bem, lhe fiz:

-Acho que chove pela Quarta-feira,
O tempo vira sem mandar recado...
A vida é buena pra quem tem tutano,
Meu candidato vai ganhar no estado.

Cala então a voz, mas o sorriso fica
Estampado no semblante antes tão sério,
Como a desvendar todo o mistério
Que encontrei em sua aparição.
E agora entendo porque esse vivente ,
Criado n’algum fundo do Rio Grande,
Se encontra no serviço de ambulante
Nos urbanos confins da Redenção.

Vem do campo sim, é missioneiro,

Conforme a cruz de quatro braços que carrega...
E a alma firme, que não desassossega,
Nem frente aos vícios desta capital;

Traz horizontes dos varzedos largos,
Banhos de sanga, marcação, mangueira,
Timbres gravados pela vida inteira
Que ainda ostenta no jeitão bagual.

Outros rumos cruzaram seus caminhos,
Outros passos traçaram suas distâncias,
E quem já era valente nas estâncias
Mais valente precisou ficar...
Escasseou a lida campesina,
Escasseou o pão na própria mesa,
E pela fome, pela sua fereza,
Ganhou o horizonte, a gauderiar.

Levou consigo os sonhos, esperanças
E toda a crença no valor do suor...
A cidade, porque não? Ainda resiste,
Pois tem certeza que não há limites
Pra quem trabalha, e sem tombar, persiste
Seguindo as cores de um viver melhor.

Nem sempre o campo traz fartura aos filhos,
Nem sempre a querência é mãe zelosa...
E a miséria, por cruel e poderosa
Empurra os desgarrados mais adiante
Rastreando o seu lugar neste torrão;
Por isso é que encontro neste parque
Que habita o coração desta cidade,
A imagem de um gaúcho de verdade,
Altivo, na mais plena liberdade,
Pilchado, junto ao carro de bebidas,
Forjando a sua própria redenção!!!