DAS CISMAS DE UM BOI TAFONEIRO

Ari Pinheiro


Cova, rama e folhagem.

Raiz, tafona e farinha...

Se foi a ilusão que havia

No sem fim das invernadas...

Minha história foi mudada

Quando parido na pampa,

Ainda terneiro sem guampa

Me cambiaram ao litoral,

Para este estranho missal

Onde minha alma  se acampa...

 

É estranha a vida aqui dentro!

Canga, corolo e calor,

É como se a boca do cevador

Me triturasse aos poquitos,

Ralando meus infinitos

Para que a prensa, qual poeta malino

Componha o triste hino

De exílio deste campeiro,

Que virou boi tafoneiro

Cumprindo um rude destino!

 

Mais de mil dias e noites,

Mais de mil noites e dias!

Pelas madrugadas frias

Ou tardes de soalheiras brabas

Minha dinastia arrodeava

Numa estranha contra-dança,

Como quem tece uma trança

Pra que a “carne de mani”,

A herança dos Guarani

Forjasse o pão da esperança!

 

Eu via a farinha branca

Parir medroso e valente,

Vi a rama virar semente

Em covas multiplicadas,

Para novas carroçadas

Que desfilavam choronas

Trazendo a vida de carona

Costeando a estrada real

Abandonando o mandiocal

Para renascer nas tafonas!

 

Eu vi amores surgirem

E morrerem aos pés do forno.

Em Nossa Senhora

Da Conceição do Arroio

Fui ator e testemunha,

Da mudança mais terrunha

Que esta terra já pariu

Eu sou o que um dia partiu

Deixando a beira da sanga

Pra viver como boi de canga

Onde nasce o mar e morre o rio!

 

Bicho não devia pensar,

Assim não teria anseios

Não fui touro de rodeios

Nem escarvoei nas coxilhas;

Não tive harém de novilhas

Nem prole nos pastiçais,

Do campo largo e mananciais

Me restaram canga e cocheira

E arrodear a vida inteira

Desmanchando mandiocais!

 

Eu sei que o tempo passou

E que muita coisa se foi,

Só esta sina de boi

Não muda meu cativeiro...

Escapei do saladeiro

Porque o destino quis assim,

Mas estou igual as tafonas, no fim!

Com a vida e o casco gastos,

E o horizonte é meu próprio rastro,

Dando voltas... dentro de mim!