VIAGEM PELA MEMÓRIA DO TREM
Apparicio
Silva Rillo
Antes do trem, chega o apito
fino
e, a gente que espera o trem
toda se empolga para ver o filme que,
um dia sim, outro não,
passa no cinema a poeira da estação.
O trem que vem trás quadros e quadrados
que levam nas molduras os retratos,
que falam, riem e acenam com as mãos.
O trem é sempre o mesmo filme,
cada dia sim , cada dia não,
ninguém paga ingresso mas todos vêem
a móbil fita do trem,
que passa e que repassa
na tela em cores mutantes,
que ora é verde quando é mato,
é ocre quando barranca
e de repente a luz branca... do sol na tela do céu...
“Olha a bala de coco, olha bala de coco...
Quem que quer?”
A estaçãozinha é uma ilha arrodeada dos verdes da
querência.
Re-ti-cen-tia o aparelho morse,
no tic-tac-tataque que transmite... “Estou perdida”!
Mas chega o trem da cidade, quanta gente colorida,
e a estaçãozinha parece ter renascido pra vida.
O guri corre o balaio no
comércio de um momento,
não maior que três minutos...
o trem descansa e ele cansa
pra vender os seus quitutes:
- “Pastel quentinho, ovo e carne,
tem azeitona comadre!
Da janela a negativa:
-“Vai vê que é pastel de vento,
que assopra e a gente se gripa”!
Ficam os pastéis no balaio,
se vai o trem como um raio.
A fumaça desenha o caminho do trem,
mas se perde na curva antes da ponte que encilhou o rio.
- “Olha Maria, a fumaça do trenzinho tá mudando de
feitio”.
-“João, que lindo, mais parece um passarinho!”
-“Pois não parece Maria, pra mim o bicho é bugio!”
“Seu Guarda-Chave atenção,
Ai vem o trem da noite, acenda a luz do lampião!
Abra os ouvidos irmão, apure os olhos de ave,
se errar a boca da chave, vai suceder confusão,
um trem de bico no outro num beijo de traição”.
-“Abra esta linha correta,
pra esse trem que ai vem,
deixando cancha pro outro que é de carreira também!...”
-“Seu Guarda-Chave, obrigado,
seus golpes de mão esperta são a saúde do trem,
e dos que nele vem embarcados, são a saúde também”.
Férrea a roda traz a moda, nas notícias do mundo
reescrito, a cada dia, nas folhas de jornal...
-“Tão guerreando nas Árabias meu compadre!
- Donde fica este lugar?
- Longito, segundo entendo, d'otra
banda do mar.
- E dá pra ir d’cavalo?
- Sendo do pêlo tordilho, o tordilho é um barco n'água,
...até que da pra arriscá!...”
Férrea a roda trás a moda, nas notícias do mundo
Reescrito, a cada dia, nas folhas de jornal...
-“Olha o diário, olha o correio!”.
O pregão de revisteiro vestido de marechal.
-“Vai leva?”
- “Hoje... não vô leva, deixei de compra jornal,
só ouvo rádio que agente gira os botão
e se muda quando a notícia de mal”.
O sonho do menino era montar
uma vez,
o cavalo de ferro e olho de brasa, que vinha puxando o trem,
renqueterem, repechando,
baixando e renqueterem...
Um dia ficou na frente para pular na garupa,
-“Upa-upa e lá vou eu!...”
Ficou nas patas de ferro do cavalo olho de brasa
que tanto o quisera seu.
Vão-se os boizinhos de campo pelo trem...
mugindo e que mugindo, no seu apito rouco
de não volto mais, de nunca mais...
Os boizinhos não sabem mais um dia voltam,
nas latas redondas de carne em conserva, para o armazém.
Sempre volta, de algum modo,
quem saiu de sua terra, pelo caminho do trem.
No vagão de carga vai o trigo, caminho para o moinho,
num pão-que-te-pão,
que-te-pão.
O trigo também não sabe, mas
um dia voltará,
numa bolsa de farinha timbrada em tintas de rubro,
lá pela volta da pá...
para as gamelas de massa, que é d’onde o pão que
amanhece,
sai para o forno aquecido, com brasas de Camboatá.
E pé-que-te-pé, do forno pra mesa,
pra fome do homem
que toma o café.
Café com pão novo, que bom que ele é.
Sempre volta, de algum modo,
quem saiu de sua terra pelo caminho do trem.
O sino da estação...blém-que-te-blém,
despede o trem.
Rasga, ringe, a roda roxa, pelo rio liso dos trilhos.
-“Até a volta”...
Os vagões e sua escolta,
como tatus cavocando,
para frente, para frente,
para frente, para frente.
Abrindo um buraco ocô,
na matéria do ar,
limpo e silente.
E ficam todos olhando
a rabeira do trem que, sacode, que sacode,
com este jeito de traseiro, que toda mulher faceira,
sabe que tem e provoca, provoca e sabe que tem.
E lá se vão sacudindo rabeiras de femêa e trem.
Se minha casa sem rodas, tivesse asas.
Ah!... Mas se tivesse asas.
Se minha esperança que não dança,
tivesse trilhos.
Ah!... Mas se tivesse trilhos,
eu me ia, ah!... Se eu me ia.
Pelos fundos, pela frente,
pelo mundão diferente deste meu mundo de ais.
Como este trem que ai vem,
como este trem que ai vai...