RUMO E QUERÊNCIA PARA UM TROPEIRO MORTO
Apparício Silva Rillo
I - RUMO
Como terá sido?
Quando foi?
Não importa a resposta ao
tropeiro morto.
Morto no imenso e verde
campo.
Verde e imenso.
Como um mar interior de
flechilha e de trevo.
Ele agora sabe as respostas
melhor que os que ficaram.
Todas as indagações que levou
vida afora
na mala de garupa,
leves para a anca do pingo
e pesadas para suas razões de
índio bruto,
tem agora a marca e o sinal
do entendimento.
Tudo agora se aclarou,
como um velho galpão de
estância, penumbroso,
de que se arrancasse de golpe
o santa-fé
para um banho de sol ao
meio-dia.
Acontece que ele cruzou a
última porteira
e depois dela, os campos são
imensos e verdes
como os da querência onde
cruzou desde guri.
Ah, são imensos e verdes os
campos do outro lado,
e as respostas que uma vida
inteira lhe negou
estão à flor da terra,
embonecadas e simples
como os pendões de flechilha
sobre os campos
quando é tempo de viço e
primavera.
Nem precisa perguntar, tudo
és tão claro!
Tudo o que dentes parecia
misterioso
como um grotão de mato à
meia-noite.
Agora sabe
por que foi pobre e foi só a
vida inteira,
e sabe por que razão a china
ruiva
fez pata larga no rumo de
outro rancho mais rico do que o seu.
Mas já cruzou despacito a última
porteira
e no lado de cá todos os
homens e todas as chinas são iguais.
Por que se preocupar com o
que ficou?
Se do lado de cá os campos
são imensos e são verdes
como um mar interior de
flechilha e de trevo:
Se a lua andarenga é a
potranca matreiraça
que se bandeou pra cá no
sovéu de um mandado;
Se as estrelas são a mesma
tropa arisca
que rondava em campo aberto
quando moço.
Caramba! Que mais pode pedir?
- Como teria sido?
Quando foi?
Só o tropeiro morto sabe...
...Mas não diz...
II - QUERÊNCIA
Querência, Senhor, para o
tropeiro morto.
Para o tropeiro que chegou à
tua porta
arrastando no ferro das
chilenas
duas pequenas estrelas
cantadeiras.
Olha-o, Senhor: ele chegou
cansado do caminho.
É que deixou encilhado o
flete amigo
junto aos varões da última
porteira,
para chegar junto a ti como
nasceu: puro e sozinho.
Dá-lhe um cepo a teu pé, onde
se assente.
Podes deixá-lo à vontade, ele
é de casa.
E se a estrela boieira
estiver perto,
ele talvez a confunda, acesa
e clara,
com os fogos de chão de
galpões e de rondas.
Verás que sobre ele espalmará
as mãos grossas e rudes,
naquele gesto ritual dos
fogões campechanos
- gesto que é tanto teu,
Senhor, quando abençoas.
Querência, Senhor, para o
tropeiro morto.
Para o tropeiro que chegou à
tua porta
sem precisar perguntar por
ti, pelo caminho.
A estrela do pastor
mostrou-lhe o rumo,
e o teu apelo, a tua voz,
Senhor, soava-lhe no peito
como um sinserro de bronze a
tanger no silêncio.
Verás que ele falarás contigo
frente a frente,
a face curtida de sóis e
curtida de ventos
encarando-te a face,
confiante em teu juízo sobre
ele,
será um juízo de pastor para
tropeiro,
de um parceiro de ofício,
quase irmão.
Querência senhor para o
tropeiro morto
que chegou para servir-te e
bater à tua porta
trazendo a alma aberta sobre
as mãos,
- como um pala de seda muito
branco
que a poeira do tempo não
tisnou.
Dá-lhe, Senhor, a distância
infinita de teus campos,
imensos e verdes como os da
querência que deixou.
Dá-lhe, Senhor, a tropilha
dos ventos para encilha,
onde relincham os cavalos que
renasceram da morte dos combates
para os tropéis de liberdade
de teu céu.
E dá-lhe, Senhor, a tropa
ruiva-ruana de estrelas
para as toadas de ronda,
reponte e pastoreio,
que as avozinhas do pago lhe
ensinaram
muito de ouvido e mais de
coração.
Querência, Senhor, para o
tropeiro morto,
renascido à sua imagem e
semelhança,
teu parceiro de ofício, quase
irmão.
Como teria sido?
Quando foi?
Só vós sabeis, Senhor...
...e não direis!