Romance do Injustiçado

Apparício Silva Rillo

 

Como talhado em pau ferro

o carão de traços duros.

O bigodão mal cuidado

desabando sobre os lábios

- par de assas mui cansadas

de um alvejão de cor negra.

Melena de muitos meses

sobrando por sobre a gola

e o colorado de um lenço

sangrando em riba do peito.

 

A bombacha de dois panos

remangada sobre  a bota.

Os cravos da espora grande

mordendo a franja do pala

bem atirado pra trás.

No fivelão da guaiaca

luzindo em campo de prata

o ouro das iniciais.

 

Sobrando da faixa negra

que lhe abarcava a cintura

o cabo entalhado em chifre

da xerenga de dois palmos.

Um relho trança-de-oito

vinha arrastando a soiteira

dependurada do pulso

pelo tento do fiel.

 

Pela rédea o azulego

- se via que flor de flete -

malgrado a estampa judiada

de pingo que muito andou.

Foi assim que a muitos anos

bateu nas casas da estância

o celebrado bandido chamado

Estácio Ariju ...

 

Bandido para a justiça

- por seu respeito se explique,

que as razões de um índio macho

nem sempre são bem aceitas

pelos códigos e leis ...

 

Bandido  - por ter sangrado,

igual de raiva e de armas

a um cujo que desonrara

a mais moça das irmãs.

 

 

 

Bandido – porque apertado

entre as brigadas e a enchente,

já não podendo escapar,

por debaixo da fumaça

matou um dos quatro praças

que lo quiseram carnear.

 

Bandido – porque seguido

por milicada sequiosa

de uma vingança total,

fugiu da estrada real

para o mais fundo dos matos,

carneando chibos alheios

para o churrasco sem sal.

 

Bandido – porque enleiado

na rudez da ignorância

fez da fuga e da distância

seu modo de mal viver.

Porque quis a sina ingrata

que nunca tivesse plata

pra pagar um bacharel.

Bandido – porque não teve

a exemplo de tanta gente

cancha livre e costas quentes

a sombra de um coronel ...

 

E assim, viveu como bicho

pelos fundões das fazendas,

a carregar a legenda

de perigoso e assassino.

Chimbo, bagual, teatino,

com famas de touro alçado,

tragando o duro guisado

que lhe picava o destino.

 

Nalgum bolicho de estrada

boleava a perna, sestroso,

pelos domingos de tarde

- para um cantil de cachaça,

meio quilo de bolacha,

mais um punhado de sal.

 

Olhava de olhos compridos

para o mais das prateleiras,

- pra o bom fumo amarelinho,

pros maços de palha buena,

para a erva de Palmeira

num saco  sob o balcão.

Mas vinha curto o seu cobre,

mal e mal pras precisão,

o bolicheiro era pobre

e ele não era ladrão…

 

 

 

E a polícia no seu rastro

malgrado o tempo passado.

Perseguido e acuado

por plainos e socavões.

Sempre mudando de pouso

pra confundir os milicos,

que em manhas, sim, era rico,

por evidentes razões.

 

Cansou-se um dia afinal,

daquela vida de bicho,

daquele estranho cambicho

com as más volteadas da sorte

- de não ter rumo nem norte,

não ter descanso ou sossego.

 

E assim bateu cá na Estância

naquele entono de taita

que manda parar a gaita

por ter cansado do baile!

 

E o patrão - velho buerana,

pediu o Estácio Ariju

que mandasse algum xiru

levar ao povo um recado:

- Que viesse o delegado,

que ele afinal resolvera,

ele o “bandido”, ele o “maula”,

trocar o largo dos campos

pelo encolhido das jaulas.

 

Nas suas noites de insônia

entre um pelêgo e as estrela,

conseguira convencer-se que,

sendo justa, a justiça,

lhe entenderia as razões,

e lhe daria, a lo muito,

poucos anos de condena

ou mesmo a absolvição.

 

Foi então que a meia tarde

num fordecão atochado

deu na estância o delegado

com quatro praças por quebra

para formar o sarilho.

Quatro fuzis embalados,

quatro dedos no gatilho.

 

 

Então Estácio Ariju

tomou seu último mate…

no mesmo entono de guapo

que era o seu jeito de sempre,

arrastou a espora grande

na direção dos milicos.

 

- Nem mais um passo !

- Gritou-lhe num gritinho de falsete,

o delegado, um joguete

nas mãos do chefe local.

- Levante as mãos! Largue as armas

- Teje preso, seu bandido

seu metedor de pendenga!

 

E o Ariju, decidido

a entregar-se sem briga,

levou a mão na barriga

pra descartar a xerenga ...

 

- Cuidado! Berrou um praça.

 

Tremeram cinco covardes

e na calma dessa tarde

berraram quatro fuzis.

 

Quatro sóis de fumo e sangue

se  lhe acenderam no peito.

 

Foi desabando aos pouquitos

de frente para os milicos

no jeito de um velho angico

caído junto às macegas

que lhe invejavam o entono.

 

E já quase adormecendo

para o derradeiro sono

- Quatro vezes mal ferido -

teve  ainda tino e ouvido

para escutar um dos cinco

que lhe gritava: - Bandido!

 

Caiu olhando pro céu,

tinto de sangue e de luz.

 

Dava-lhe o sol pela frente

como a incendiar-lhe a figura

- a mais rica das molduras

para enquadrar um valente.