POEMA PARA UM RETRATO

Apparício Silva Rillo

 

Nesse tempo, as fotografias desse tempo

não tinham a nitidez das fotografias de hoje

Nem mesmo o colorido que as antigas

o tinham no mais íntimo de si.

Vejam, que nesta foto há pátinas e sombras

e um esmaecido gris de além quarenta anos.

 

Apenas o sorriso do menino

põe um resto de luz na foto antiga,

essa que eu resgatei

do álbum de família

para poder convencer-me

que, houve um tempo

em que se acreditava, por exemplo

que era Papai Noel quem trazia os brinquedos

após a Missa do Galo, no Natal.

 

Ouço um guri a cantar e dói-me o canto

que eu sabia cantar, mas esqueci

 

"Revólver na cinta,

viola na mão

bodoque no bolso, no outro um pião

café com bolacha e arroz com feijão"

 

Por onde andará

o revólver de alumínio, que Marciano

meu pai, deixou-me ao pé da cama

decerto que nas mãos dos meus próprios fantasmas

esses que as balas dos anos abateram, um a um

e que são hoje apenas os retalhos costurados

do pano áspero da alma, que me veste por dentro

e a violinha de madeira frágil?

meu pai do outro mundo telegrafia,

para dizer que a viu com meu anjo da guarda

aquele que eu corri, quando assumi meus diabos

e que meu anjo da guarda, tristezinho

Canta a cantiga que eu cantava e esqueci.

 

"Revólver na cinta,

viola na mão

bodoque no bolso, no outro um pião

café com bolacha, arroz com feijão"

 

E meu bodoque que alcançava passarinhos

na ramas verdes das galhadas altas

forquilha de pitangueira, borracha cor de café

bodoque de tiro e queda

Jesus, Maria, José que só entraram no verso

para que a rima desse pé.

 

Tiro o peão do bolso da bombacha

e visto-lhe a fieira de algodão "zás"

ei-lo a girar no circulo riscado

miniatura doi mundo a rodar sobre o chão.

 

Mal eu sabia que meus sonhos todos

todos os sonhos que eu tinha então

foram apenas piões que morreram

a deriva na poeira do tempo ou na palma da mão.

 

Meu pai retorna, lá de traz do mundo

põe-se comigo na fotografia

a violinha de madeira frágil

reencontra na mão do anjo

as antigas harmonias, bailam piões e os passarinhos mortos

recriam asas para melodia.

 

tanto tempo depois e eu sou menino

cantando apenas pelo coração.

 

"Revólver na cinta,

viola na mão,

bodoque no bolso, no outro um pião

café com bolacha, e arroz com feijão"