OS ANIMAIS
Aparício Silva Rillo
Porque os animais falavam
Não os chamamos jamais de animais.
Ademais porque adoramos seus retratos
Porque viemos deles e os chamamos
De nossos ancestrais.
Porque andavam sobre dois pés
Como hoje nós.
Lutamos como cães com quem aluda
Terem sido animais nossos avós.
A história verdadeira desses homens
Não a história oficial, cheia de dedos
Sempre relevada em seus segredos
Põe a nu à outra face das figuras.
Levantados num cravo das molduras
Olham-nos com olhos abissais
Os animais.
Lá estão severamente ornamentais
Os que a memória titulou
De alferes, caudilhos,
Coronéis e Generais.
Eu nasci noutro tempo
E noutro espaço
E, também como vós,
Guardo as armas
De sangue dos avós.
Mas sei a história deles
Infelizmente para mim e para nós.
E me animo à contá-la porque venho
De uma rama do clã dos animais.
Foram heróis a seu modo
E a seu modo vilões, os animais.
Enquanto alguns atropelavam lanças
Na vanguarda das tropas e piquetes
Outros chairavam facas nas degolas
Riam dos que mostravam
punhos amarrados
cortavam-lhes a jugular
como quem brinca de decepar
a cabeça de bonecos nas cavalhadas
de Mouros e Cristãos.
A certos Animais lhes sobravam galões
e faltava coragem.
Para brigar por suas cores e idéias,
importavam a peso de libras e vantagens
façanhudos mercenários orientais
Alucinatório, o fogo os fascinava.
E o adoravam para brinquedos a
Sério nos combates.
Cercavam ranchos, casas de tijolos,
Capões de mato,
e os transformavam
Não
De que morriam carvões junto a seus pés.
Alguns dos animais
Cortavam a peia de seus prisioneiros
E lhes abriam a ilusão da liberdade.
“Ide em paz – lhes diziam – mas correi”
e os abatiam pelas costas.
Nos ataques às estâncias,
no cerco as vilinhas perdidas,
nos empíricos mapas rabiscados,
as mulheres (dizei a favor dos animais)
eram poupadas.
Para o banquete carnal, seja acrescido.
Para os chefes as primícias do hímen
As lágrimas sugadas pela língua
Saburrosa e viperina.
Respeitava-se a hierarquia a hierarquia nesses lances.
Aos negros pela regra,
Sobrava a inércia, a carne castigada,
Não raro o rito da necrofilia.
Nem todos, ou raros foram assim,
Tão animais.
É pena que a exceção confirme
A regra todos conheceis demais.
É que sempre, atentai,
Por de trás de um justo existe a sombra
Os caninos e a garra do Animal.
Hoje?
Pouco mudou ou mudou quase nada,
Ou quem sabe mudou para pior.
O clã dos animais estupra e mata,
Mercadeja a tortura, rói no escuro,
Abate pela espádua e atropela.
A morte encomendada se anuncia
Na manchete de todos os jornais.
A chama come a carne da inocência
E a droga faz plantão junto às escolas.
Judas multiplicou suas moedas
E venda justos para o sacrifício.
A corrupção refinou os Animais
E o poder e seu ouro é o Santo Graal
Que os impele a subir sem pisar em degraus.
Dói-me Senhor,
Este sangue da palavra que arrancaste
Como pedaço de mim teu instrumento.
A razão me fez escrevê-la
E em teu nome Senhor, a subscrevo.
Olho o retrato dos avós que dormem
Com sua excelência e pecados
E me envergonho Senhor
De havê-los desnudado
De seu manto de santos e heróis.
Foram frutos da planta de seu tempo
E se trançaram os avós, pela rota marcada
Na carta de viagem,
Que lhes deste aos de Ontem, ao de Hoje,
Aos de sempre Animais.
À tua imagem e semelhança desenhados.
Apenas isso Senhor
E nada mais.