MEMÓRIAS PARA UM MENINO DO
ANO DOIS MIL
Apparício Silva Rillo
Eu
sei que teus relvados serão verdes.
Eu
sei que haverá flores sobre a relva.
Eu
sei que escutarás canto de pássaros
e
os verás entre as ramas também verdes
-
um verde de outro matiz
que
não aquele em que teus pés calçados
estarão
proibidos de pisar.
Eu
sei que haverá tanques e nos tanques
hectolitros
de água verdazul,
e
no claro das águas tantos peixes,
da
cor de ouro alguns, prateados outros,
e
estranhas rãs manchadas de amarelo
e acima
delas a vitória régia,
a
graça de uma garça sobre ela.
A
tanto chegará a ciência de teus dias,
Menino
do Ano dois Mil,
que
relva e flores e pássaros e ramas
e
água verdazul e peixes coloridos
e
rãs, vitória-régia e gráceis garças
serão
frutos do invento, do cálculo, da técnica,
da
fria inteligência dos homens de teu tempo.
Tudo
sintético, tudo mecânico,
Menino
do Ano dois Mil.
Totalmente
transistorizado tudo e todos
- o
canto, a breve asa que tremula,
a
barbatana que dança, a rama que balança,
e
até o vento, menino, até o vento.
Acharás
os grandes parques parecidos
com
paisagens que ficaram nos filmes e slides
que
o computador, teu professor, fará rodar
na
imensa tela de uma sala imensa
que
se chamará, quem sabe, a Sala do Passado.
E
os pássaros parecerão iguais,
os
peixes parecerão iguais,
as
flores parecerão iguais.
Porque
terão perecido
parecerão,
mas
não serão.
Tu
viverás o tempo da mentira,
Menino
do Ano Dois Mil,
um
número qualquer nas megalópolis
de
aço polido sob um céu de chumbos.
Eu fui
menino antes de ti sessenta anos
e
tudo então não parecia,
era.
Era
o capim que era verde
quando
era tempo de seivas e de verdes.
Era
a flor que se abria para um vôo de abelhas
quando
era tempo de flor e hora de abelhas.
Era
o canto do pássaro, dos pássaros
por
entre ramas a coarem ventos
que
galopavam como potros livres
por
campos que não era de tartan.
Era
a sanga, o arroio, era o lago, era o rio.
Era
o caniço sobre as águas limpas
e
na fisga do anzol o lambari de pratas.
Era
na mão que o cerrava um frêmito de escamas
e
um riso de dez anos que timbrava
como
um címbalo de prata sob o sol.
Era
meu pé descalço que pisava
as
fundas trilhas que levavam gados aos
bebedouros
dos arroios fundos
onde
lontras ariscas mergulhavam
como
um grito afundando no silêncio.
Era,
Menino
do Ano Dois Mil,
não
parecia.
Eram
meus dentes a trincar nos matos
azedos
de araçá, rubros de amoras,
leves
de guabijus, mansas pitangas
e
um ouro de laranjas que as geadas
faziam
doces quando agosto vinha.
Eu
mesmo fabricava meus brinquedos:
-
minha espada de tala de coqueiro
meu
arco e flecha, minha atiradeira,
minhas
facas de arcos de barril.
E
avião de duas asas e pandorgas
que
eram bandeiras da infância
hasteadas
no azul.
Sabes?
O
céu da minha infância era limpo e azul.
Sabia
versos que meu pai sabia
por
haver aprendido de seu pai:
“Rei,
capitão,
soldado,
ladrão.
Moça
bonita
do
meu coração.”
E
marchava para guerras de mentira
ao
compasso marcial desta quadra singela,
pisando
firme para o rei do verso
me
sagrar seu primeiro capitão,
para
que as moças bonitas, de oito anos,
me
sagrassem, também, no coração.
Tudo
em meu tempo, meu menino, era.
E
ser é muito mais que parecer.
Era,
menino,
o
seio de minha mãe, túrgido e manso,
e o
leite dele que eu sorvia quente
em
horas que eu não sabia, mas sentia.
Era
a cantiga de ninar que ela cantava
e o
menino que a seu canto adormecia.
Eu
fui menino antes de ti sessenta anos
e
tudo, então, não parecia,
era.
E
era tanto
e
tão profundamente,
que
eu jamais imaginei um piá diferente
como
tu, meu menino, no ano dois mil.