EU, SANTO DE MADEIRA, PECADOR.
Apparício Silva Rillo
I
Dispo-me da camisa
da calça
do calçado
do chapéu sobre o cabelo
do cabelo
da sobrancelha
do bigode triste
das rugas e vincos sobre a boca amarga
dos duros pecados da alma
dos
pecados frutificantes do corpo.
Encarno-me na imagem castigada.
Tomo seu corpo de século e madeira.
Diluo-me em lenho e cerne.
Enrijeço-me em braços de doação e mãos de
oferta.
Planto-me
em duras pernas sugeridas.
Enfibramse
férreos meus músculos dúcteis
meus dedos
de baile e flor meus viajeiros pés.
Meus
olhos inquietos aquietam-se em seus olhos parados
de verde-tempo pintalgado a ouro.
Meu coração se faz semente na jaula
de corpo
morto
— vegetal desseivado pelo corte.
Renasço-me em vertical ascensão de fuste ao vento
alto de vigoroso tronco
garços galhos ágeis
úmida folhagem de pássaros
canora pluma de ninhos
bandeira de temporais
assomo e sombra
—
cedro secular no campo escampo.
0 machado
me abate — tombo e traço.
A lâmina me corta — forma e fôrma.
A mão do artista me acarinha em cortes
adelgaça-me o torso.
De repente a curva da testa, o nariz,
olhos e boca.
O duro queixo de sacrificado.
O gesto de perdão na corola da mão.
Vestem-me o rosa, o carmim, o ouro, o azul.
A água santa me banha, o incenso me seca.
Uma coroa,
uma
cruz,
um
nome qual.
Da oficina ao andor, do andor ao altar.
Dobra-se por mim o joelho do índio.
Por mim
madeira humanizada em corte
e cor.
II
Como
o filho de Deus na escarpa mais alta do monte
vejo a nascente Redução à sombra de meus pés:
a reta geometria do povoado
e pedra a pedra o templo áspero plantado.
Negra, a roupeta do padre.
O torso do guarani, músculo e cobre
vestidos de suor.
Vigilância
no azul
o mangrulho espetando a distância.
No dobre do sino o galope dos potros mal domados
disparando o
vento mordendo a cara
enflechando o cabelo
rindo no lábio do índio
cantando flautas nas lanças de taquara.
0 berro do touro secou no couro ao sol.
Desenha sóis no círculo do laço
girândola no zum das boleadoras.
O loiro pendão do milho
a mão na mão do pilão
batendo tambor
tão bom
socando
e
do grão a farinha
e da farinha o pão.
Caminham
capuchos de algodão nas vestes claras.
Ajoelham-se
em saias genuflexas
na sombra incensada e úmida
do templo.
Rótulas na dura pedra: "Sursum Corda". . .
Dói-me nos olhos a lágrima do índio
que me louva em latim e uiva como um cão
- na
Sexta-Feira Roxa da Paixão.
Dói-me seu pecado contra o sexto mandamento
menos luxúria que o bom do instinto são
- na Sexta-Feira Roxa da Paixão.
Dói-me
sua carne flagelada a japecanga
- na Sexta-Feira Roxa da Paixão.
Dói-me
a rubra chama do archote em sua mão
- na Sexta-Feira Roxa da Paixão.
Dói-me
vê-lo dobrado a meus pés, irracional irmão
- na Sexta-Feira Roxa da Paixão.
e
morro no altar-mor a seu coro de angústias
quando os versos do "Cristo Nhandejara"
cantam do chão
para o céu e do céu para o chão
"Conde,
êbate, ynenbohi acuera.
Nandemonangara, ynenbohi acuera.
Ah, Cristo Nhandejara!"
sem que eu lhe mereça esta entrega de
amor,
eu,
santo de madeira
pecador.