(Antonio Augusto Ferreira)
Rio
Negro foi assim, mais que um combate,
foi
todo um dia devotado à fera,
e a
gente viu as presas da pantera
cravarem-se
mortais na carne humana
no
lugar preferido: a jugular.
Rio
Negro, como palco que era verde,
ficou
tomado de vermelho e preto,
e a
gente viu a força com que o ódio
irrompe
dessa audácia que há no homem
pra
dar lugar à fúria do animal.
O
combate era entre tropas da fronteira,
homens
forjados no calor da guerra
que
nesse dia fez tremer a terra
com
sentenças de morte sem defesa.
Foi
condena de tantos, que eram bravos,
e
vendo-se perdidos, soltam armas,
mas
tombam degolados no holocausto
pra
que o ódio se espoje no banquete
e a
fera possa devorar a presa.
Essa
revolução vinha de longe,
tava
estampada n'alma e nos pescoços.
A
cor de lenço era o brasão dos moços
que
os unia ao caudilho do lugar.
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já tinha feito estragos
nas
heróicas cargas a cavalo;
e
as mortes a fuzil e a ferro branco
semeavam
carniças pelo pago.
O
combate em Rio Negro foi terrível.
Joca
Tavares, do quartel de João Francisco,
com
3.000 homens, em manobras ágeis,
cerca
e envolve a força governista.
Já
não dá mais pra resistir na guarda,
a
desvantagem em número e terreno
obriga
os homens a depor as armas.
Ao
todo são 300 prisioneiros
que
estão agora maneados na mangueira.
O
comandante vencedor se afasta,
mas
e quem é que fica em seu lugar?
Pois
é aí que surge no cenário
a
figura mortal de Adão Latorre,
de faca
em punho pra tratar dos presos.
É
que ele tinha contas a ajustar.
Manda
trazer pra fora os prisioneiros,
um
por um, despojados e maneados,
vêm
sendo apresentados pra sentença.
A
razão é indiferente na degola
e a
decisão dispensa os argumentos.
A
execução começa sem rodeios:
amunta
no cangote do vivente,
a
mão esquerda puxa-lhe os cabelos,
enquanto
a faca abre dois buracos
na
carótida que esguicha o sangue quente.
É
degola brasileira a que pratica
nesse
começo mais que criterioso
de
matar prisioneiro a sangue frio.
Vem
outro condenado - um salto, o talho;
a
mão, as roupas se empapando em sangue
aumentam
o furor do coronel.
Esse
bodum de sangue, suor e fezes
e o
terrível odor que tem a morte
atrai
a cachorrada do galpão
que
vem lamber as poças no local.
Uma
carroça embarca o degolado
depois
que ele exercita os movimentos
subseqüentes
ao golpe da degola:
primeiro
vem o talho e a golfada.
depois,
pára de pé, ensaia uns passos,
solta
uns gritos e uns roncos de terror,
estremece,
cai e se contorce até a morte.
Latorre
afia novamente a faca,
parece
conhecer o seu ofício,
mas
à medida que lhe espuma o ódio
muda
de tática, mostra outra maneira
de
passar um cristão no fio da faca..
É a
"criolla", a que exige menos,
não
requer cuidados nem perícia,
o
talho a trafegar de orelha a orelha,
um
golpe só, cortando artérias, goela,
igual
a quem, não sabendo, sangra ovelha.
O
prisioneiro Pedroso é altaneiro
mas
tenta negociar com a facínora:
"-
Quanto vale a vida, Adão,
de
um homem bueno e valente?"
"-
Valente sim, vossimecê,
mas
bueno não, pelo que andou fazendo.
A
tua nada vale, tá no fio da minha faca".
Pedroso
sente o calor da antiga luta,
levanta
o queixo, entesa o corpo, afronta a faca:
"-
Então degola, negro fiadaputa!". (*)
O
local tá virado em sangue e barro
numa
pasta que já vai se grudando
nas
botas dos soldados.
Os
caranchos estão sentados
nos
galhos dos umbus
à
volta do massacre..
O
carroceiro leva os corpos quentes
pr'uma
lagoa,
jogando-os
n'água para que se afundem.
Essa
lagoa passou a chamar-se "Música"
pois
dizem que os gemidos dos coitados
ainda
hoje assombram essas plagas.
Vem
notícia pior da beira d'água:
uma
vara de porcos esfomeada
pressentiu
o fartum da carne fresca
e
está devorando alguns cadáveres
pois
não deu tempo de os jogar no fundo
ficando
alguns largados pela margem.
Ao
todo são trezentos os da faca?
Ainda
hoje se discute o número
dos
sangrados neste dia, no Rio Negro.
E o
que ficou desse macabro fato,
que
teve represália no Boi Preto,
onde
outro coronel, um outro bárbaro,
deu
o troco de moeda de igual peso?
Ficou-nos
esse quadro de tragédia
que
não se apaga nunca, nem num século,
e
mancha tão profunda nossa alma
quanto
denigre a história conterrânea.
Rio
Negro foi assim, mais que um combate,
foi
todo um dia devotado à fera!