O Efeito do Isolamento

Maximiliano Alves de Moraes

 


A noite estendia o poncho

E o redomão rabicano

Se desenhava na estrada

Co’a sombra do luar cheio.

Cerrava a segunda sova

E ao retorno do domingo

Já troteava como pingo,

Prontito pra ganhar freio.

 

Se arrastou o rabicano

Numa negada violenta!

Quando o índio tem tutano

Nem corcovo nem negada,

Pode até forjar rodada

Que a curva da perna aguenta!

 

Mas algo havia no trecho,

Pouco antes do repecho,

Junto ao pé de umbu criado!

O assombro do rabicano

Era um corpo de humano

Estendido, ensanguentado!

 

João Mulato, domador,

No comenos se apeou.

É instinto do vivente

Acudir todo o morrente

Sem olhar a cor do lenço,

Sem saber porque tombou!

 

A lua clareava a cena,

Um João de pele morena

Acolhendo o ensanguentado

E uma triste conclusão:

Já era manso o coração

Do corpo humano atirado!

 

Qual raio antes do trovão

A lei chegava no ato,

Junto à cena de um mulato

De corpo e semblante exangue.

Nas vestes, manchas de sangue

E à cintura uma prateada.

Pra atribuir a culpa a João

Não precisava mais nada!

 

Bem montado, o delegado

Foi quem deu voz de prisão:

- Teje preso, seu bandido!

- Deixe a faca e redomão!

E a fugaz tropa da farda

Invadiu a cena parda

Como cardume em farinha,

Como besouro em lampião!

 

Não houve alce pra nada,

A lua e a madrugada

Testemunharam a ocasião:

Um mulato ensanguentado

Levado como bandido

E um redomão rabicano

De rédeas soltas no chão!

 

Coisa triste uma prisão!

Pra quem tem culpa, um inferno

E para o injustiçado,

Talvez o lugar sagrado

Onde Deus pede perdão!

 

Quem viu sol nascer liberto

Nas planícies de fronteira,

Ao final da madrugada,

O enxergou por entre os ferros,

Sem relinchos de cavalos,

Sem canto de galo e berros.

 

Nunca teve defensor.

Quem é pego ensanguentado

Junto a um corpo sangrado,

Se não tem guaiaca gorda,

Sua defesa é proscrita.

No registro, breve escrita:

O assassino domador.”

 

Tranqueou o tempo...

E uma lima de três quinas,

Como escapula divina,

Foi parar na mão de João

Em uma tarde feliz.

Se a justiça é injusta

Pra um preso o que menos custa

É uma lima ser o juiz!

 

Passava os dias de ócio

Gastando as grades de aço,

Como tratava as esporas,

Que em tardes de garoa

Preparava dente a dente.

Esperava o sol poente

Pra “acariciar” as amarras,

Como faz o guitarreiro,

Gastando nota em ocasos

No alambrado da guitarra.

 

Ninguém reparava o feito,

A não ser o sol fronteiro,

Espreitador de janelas,

Que ao sobreano do dia

Sombreava o dente do ferro

Lá na parede da sela!

 

Mais tempo.... menos ferro...

Mais tempo... menos ferro...

Mais dente... menos tempo

Pra um João mudar de sina.

Findou o tempo, findou o ferro,

No trabalho silencioso

De uma lima de três quinas!

 

O corpo esguio e moreno

Se resvalou pela fresta

Como a nascer novamente.

Um parto pra liberdade,

Em que a prisão dava luz

A um cativo inocente!

 

Vento no rosto

E sol inteiro.

Era um agosto

Com ar de janeiro!

 

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O efeito do isolamento

Pra aquele que é inocente

É como dor de lombilho!

Enquanto o lombo tá quente

A dor dói, mas não se sente,

Quando se tira as encilhas

A basteira é permanente!

 

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Se acampou numa tapera

Pra bem de pensar na vida.

Pensou no tempo, no rabicano

E na longa fieira de anos...

Mas logo em seguida,

Sofrenou o pensamento

E a insopitável vingança

Desata o laço dos tentos!

 

Não havia o rabicano,

Perdera a noção do tempo,

Pois lá da segunda sova

Passaram-se quinze anos.

 

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O efeito do isolamento

Pra aquele que é inocente

É como dor de lombilho!

 

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Roubou, matou, manchou a alma!

Era um índio destemido

E o aço era seu parceiro.

Espora pra caborteiro

E faca pra delegado!

 

Igual guará na capoeira,

João rondava o povoado

Pra cobrar o quarto de vida

Em que viveu enjaulado.

O guará ronda cordeiros,

João rondava o delegado!

 

Certa aurora, o sol redondo

Lambeu a crista do mato,

Na picada a comitiva

E na ponta, o delegado!

 

Nunca é bom facilitar

Quem tem vingança na alma

E injustiça no coração!

Uma mão na cana da rédea

E a outra na cortadeira

E um delegado no chão!

 

Quem passou quarto de vida

Inocente na prisão

Não repensa nenhum pouco

Pra dar motivo de novo

A uma mesma situação!

O delegado sangrado

E João de faca na mão!

 

Mais uma vez carregado

Pra o brete que um dia enjoou,

Mas desta vez um culpado

Na decisão que tomou!

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O efeito do isolamento

Pra aquele que é inocente

É como dor de lombilho!

Enquanto o lombo tá quente

A dor dói, mas não se sente,

Quando se tira as encilhas

A basteira é permanente!

 

..........................................

 

É mais um João condenado,

Bombacha puída e calos,

Na história...

Na história muitos cavalos

Amansados com capricho,  

Algum trago no bolicho,

Sem recuerdo de cambicho

E alma cortada em tiras

Da decisão que tomou!

 

É instinto do vivente

Acudir todo o morrente

Sem olhar a cor do lenço,

Sem saber porque tombou!