Bianca Bergmam
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco,
no começo de um verão que marcou pra vida inteira!
Era
como se eu soubesse que as folhas brancas, por fim,
guardariam as historias e as contariam pra mim.
Sim!
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco,
eu tinha estrelas nos olhos, tinha planos de guri...
Sonhava
brincar na lua, me imaginava voar
E
a um metro e meio de altura, gigante eu jurava estar.
E
"ai" de quem discordasse e me chamasse de "pequeno";
ganhava uma língua "feia" e eu, um castigo "lindo"!
Ajoelhado
no sereno...
Atrás
da porta dos fundos, num degrauzinho da escada,
duas horas escrevendo: "LÍNGUA FEIA E
MALCRIADA”!
Língua
feia e malcriada?!
Hoje
lembrança bonita de um homem feito, taludo,
Que foi pego de
surpresa por cem folhas no porão.
Numa
caixa os "cacarecos", "quinquilharias" da avó
e junto o caderno amigo, amassado, envelhecido.
Sofrido
que dava dó.
O
coração se espedaça, os olhos não acreditam.
Me parece que foi ontem, mas já fazem vinte anos
daqueles dias compridos, dos meus castigos e planos,
do metro e meio de altura, daquelas folhas em branco.
Folheando
as páginas velhas, quantas histórias...
Meu
Deus!
Artes
pesadas, das brabas,
onde a língua malcriada, não era nada de fato,
talvez um
simples retrato do "bom menino" que fui...
Aqui
conta que um janeiro, na casa do tio Ramiro,
com meu mano, mais três primos reunidos a tardinha,
resolvemos ir mais longe, avançar nas brincadeiras,
pela volta, na pedreira, uma taquara se viu
e logo um salto em altura,
pra atravessar todo mundo pro outro lado do rio.
Banho
certo, que perigo!
Mas
valia correr riscos, pois era só um piá.
Piá
de cabeça oca...
Piá
de certeza incerta...
Piá
com a alma aberta pras ventanias do mundo.
Viro a
página e me lembro de uma coça bem levada.
Eu
brincava de pintor.
O
mano era mais novinho, nada entendia de nada,
quando busquei uma lata pra preparar minha tinta...
Cinco
medidas de água, mais umas nove de terra,
"tava" feita a porcaria!
Que
me custou uns dois dias, sem poder sentar direito
me rebolando de dor,
Pois
do chão ao parapeito das três janelas da frente
sem perdoar nem as portas, a casa mudou de cor.
O
tempo passou ligeiro...
Aguas lavaram as portas, ventos sopraram na alma.
A
cabeça que era oca, hoje recheada de mundo,
com mil sonhos fervilhantes perpassando novos planos.
Não
sonho brincar na lua.
Já
voei e não gostei.
Gigante?
Não sou gigante! (Nem quero ser na verdade),
mas as estrelas dos olhos, essas sim ainda guardo
e vão se multiplicando a cada filho que vem.
O
coração já mais doce, vai aninhando os pedaços.
Vou
juntar os "cacarecos", devolve-los ao porão.
enquanto a noite se achega pra um milagre do tempo,
pois vou contar ao caderno tudo de bom que ainda tenho.
Ver
o que ele me fala, ver como tudo surgiu.
Talvez
pintar minhas dores, voltar na velha pedreira,
talvez pular de taquara pra o outro lado rio.
O
rio que hoje é lembrança.
Lembrança
viva e fugaz
morando nas mesmas folhas
de vinte anos atrás.
Há vinte anos atrás eu tinha um caderno em branco...
E
lhe contava em segredo tudo que a alma retém.
Hoje
nas linhas azuis, na letra feia e tremida,
pelas veredas da vida é ele que me contém.