QUANDO SE VENDE UM PINGO DE ARREIO
Sebastião Teixeira Corrêa
Ontem vendí
meu cavalo...
Foi o final de uma etapa
Da vida deste peão;
Ontem vendi meu cavalo...
Com ele vendi meus sonhos,
Minha história de campeiro
E o resto de uma ilusão.
Quando peonava
na estância
Não tinha lida ou distância
Que meu pingo refugasse;
Cruzava rios transbordando,
Pechava touro escarvando,
Como uma carga avançando
Sem força que o recuasse.
Me lembro bem, certa feita,
A sorte parou-se estreita
Quando um brasino
fumaça
Quis enfrentar, por pirraça,
A carga do meu cavalo;
Os chifres negros da fera
Fizeram riscos no couro,
Mas ao passar pelo mouro
Afocinhou num pealo.
Foi num final de verão
Que a tropilha dos alçados
ia chegando dos lados
Da fronteira da Argentina;
Sessenta potros crioulos
Quase brotando os colmilhos,
Mouros, gateados, tordilhos,
Com massarocas
na crina.
A tropilha recolhida,
Empeçou-se a maior lida
De pealos,
laço e tirão;
Tesouras ágeis cortando,
Buçais de couro cerrando
E cascos riscando o chão.
Bem num canto da mangueira
Parado na minha frente,
Com orelhas de tesoura,
Olhar de tigre valente;
Bordando a pelagem moura
Reflecos de noite escura,
Era um misto de ternura
Com nobreza inteligente.
Marcou pra mim essa cena:
Frente a frente, ali parados,
Nós, os dois, paralisados
Na magia do momento;
Do fascínio ao pensamento
De tê-lo pra os meus arreios,
Já me senti nos rodeios
Com estampa de um monumento.
Não precisou que mandassem,
Apartei ele pra mim,
Nunca vi um bagual assim
Com horizontes no olhar;
Pateava trevos no andar,
Tranqueando feito um monarca,
Mandei que pulassem a tarca
Quando empeçaram a contar.
Quem tem um mouro de arreio
Entende bem o que falo,
Arrocinado o cavalo
Depois de muita peleia;
Depois de gastar maneia
E rosetas de chilena,
Quedou-se manso, o ventena,
Nem por reza corcoveia.
E foi assim que a lo largo
O tempo passou depressa,
Cada dia uma promessa
De que a vida melhorasse;
E sem notar que passasse,
O tempo levou os dias,
Eas esperanças tardias
Morreram sem que eu notasse.
0 campo, que era do gado,
Dos cavalos, das ovelhas,
Foi se entregando às parelhas
De tratores e arados;
Foram drenando os banhados,
Foram aterrando as vertentes,
E atropelando os viventes
Para a beira dos povoados.
Sobramos, eu e o mouro,
Alpedos nos corredores,
Tragando dos dissabores
Que a vida nos serve às
taças;
Andam de bando as desgraças
Quando a sorte bate as asas,
Perdendo o rumo das casas
As changas
tornam-se escassas.
Enfim, sobrou o arrebaide
Com ruas de chão batido,
Reunindo o povo sofrido
Numa última quarteada;
Chifres de vaca parada,
Campeiros laçando a pé,
E em ranchos de santa fé
Mates de
erva lavada.
Na estância, a monocultura
Varreu a vida nativa,
A influência nociva
Do interesse estrangeiro
Manipulou por dinheiro,
Comprando alma e consciência,
Pra transformar a querência
No mais cruel cativeiro.
Então, vendi meu cavalo,
Pois me restou a favela;
Não quero ver da janela
Pastando num rapador
0 mouro, que fez fiador
Pra muita tropa morruda,
Maltratar quem nos ajuda
E um ato de desamor.
Peço a Deus que olhe o mouro
Como quem olha um vivente,
Pois este pingo valente
Vale mais que alguns sujeitos
Que se julgam sem defeitos
Mas vivem só
na traição,
Dão o tapa
e escondem a mão
Pra nunca serem suspeitos.
E se algum dia o destino
Da sorte me der a vasa
De ter um campo, uma casa,
Quero de novo comprá-lo;
Será o maior regalo
Da Divina Providência,
Quero riscar a querência
Com as patas do meu cavalo!!!