QUANDO ROMPE A REPRESA DO OLHAR
Adão Pedro Bernardes
Nasci aqui nesse vale
Aqui passei minha infância,
Por isso dou importância
Quero que o vento me embale.
Querem que minha voz se cale
0 governo, a empreiteira,
Se vai a lavoura inteira,
A taipa grande e o galpão
E quem nasceu nesse chão
Olha triste pra porteira.
Voltei pra cá escondido,
Hoje a água tudo inunda.
Minha tristeza é profunda
Estou mortalmente ferido.
Lamento e não sou ouvido
Todo mundo foi embora
Ninguém lamenta nem chora,
Pois pela indenização
Anestesiaram o coração
E eu fiquei “só” nessa hora.
Não acredito, mas sei
Que vai ser tudo inundado
Vão afogar meu passado,
0 potreiro onde brinquei,
Os caminhos que cruzei,
Nossa horta, o galinheiro,
As mangueiras, o chiqueiro
E o potreiro do fundo,
Trechos de solo fecundo
Vão sucumbir no aguaceiro.
Dizem que sou saudosista,
Radical, exagerado.
Me sinto um derrotado
E o meu ponto de vista.
Não impeçam que eu assista
Crescer esse manancial.
Nada mais vai ser igual,
Eu constato com tristeza
Vejo a água da represa
Trazendo meu funeral.
Nunca mais eu verei flores
Perfumando o jasmineiro
Nem cachorros no terreiro
Vigiando os invasores,
Pássaros de todas as cores
No arvoredo pousar.
Depois que tudo afundar
Eu perco a maior das lutas,
Pois nunca mais vou comer frutas
Nativas do meu pomar.
A sensação de derrota
É o que mais me aniquila,
Me sufoca, me mutila
E até meu pranto se esgota.
Da garganta já não brota
Nem um mísero lamento,
Fraqueja meu pensamento
E eu me sinto uma criança
Vendo a última esperança
Fugirão sabor do vento.
Tudo em nome do progresso
Pra que não falte energia,
Pra que o país possa um dia
Ter mais emprego e sucesso.
Eu, contrariado, confesso
Que considero um pecado
Afogar um chão sagrado
Berço do povo mais puro,
Por um incerto futuro
Matam um doce passado.
0 que está feito... está feito
E venceu a maioria.
E eu sou aquela fatia
Olhada com preconceito
Dos que em tudo vê defeito
E por amor à natureza
Saem em sua defesa
Vencido, agora eu garanto...
Só o volume do meu pranto
Já enchia essa represa.