TELÚRICO

Cândido Brasil

O pó do barro da terra

é a origem de onde vim,

sou matéria que encerra

princípio, meio e fim,

corpo que age, acerta e erra,

por ser telúrico assim...

 

Do ventre da terra mansa

fui tirado com afeto,

moldado com esperança

e dotado de intelecto,

sendo origem e semelhança

do supremo arquiteto.

 

Ganhei corpo e sentidos

para ser assim, genuíno,

com livre arbítrio concedido

para fazer meu destino

e a vida e cada sentido

ganhei num sopro divino.

 

Sou um ser que acerta e erra

com cromossomos em ampola

e um telurismo que berra,

das grimpa até a tejoula

e cada célula encerra

a pura cepa crioula.

 

Estrutura modelada

na fusão dos elementos,

água de fonte imaculada,

fogo de chão trafuguento,

terra de pátria sagrada

e força xucra dos ventos...

 

Da mãe terra tenho o cheiro

e seus variados matizes,

o espírito aventureiro

que é sujeito a deslizes

e o velho estilo campeiro

que preserva as raízes.

 

Meu olhar tem o verdejo

do meu mate chimarrão,

que sorvo em gole longevo,

com calma e inspiração,

onde carrego num beijo

mais calor ao coração.

Com eles vejo lonjuras

refletidas num mural

de espelhos sem moldura,

com luz de aurora boreal,

que refletem esculturas

com sua aura espiritual.

 

Minha boca tem o gosto

do que desta terra sai,

sorriso para o rosto,

sente a lágrima que esvai

e deixa ao mundo exposto

meu grito de sapucai.

 

Com ela canto verdades,

sorvo mate e alimento,

rebato as falsidades,

sorrio de contentamento

e confirmo a identidade,

terrunha cento por cento.

 

Meus ouvidos tem o dom

de sentir volume farto

e armazenar cada som

de modo que não descarto,

harpa, viola ou bandoneon,

sorriso ou choro dum parto.

 

Com eles ganho vazão de tons

e acompanhamentos,

as vozes da criação

e todos seus sentimentos,

poesia e louvação,

benzedura e livramentos.

 

Meu olfato traz nuances

de sabores e aromas,

captados em relances,

preservando o axioma,

selecionando romances

e suspirando sintomas.

 

Com ele sinto fragrâncias

de seres e materiais,

recordações da infância

dos tempos do nunca mais,

cheiro de gente e distâncias,

amigos, irmãos e pais.

 

Minhas mãos tem energia

força e desprendimento,

textura grossa ou macia

conforme exige o momento,

trazem o pão de cada dia

e expõem calos e talento.

Com elas abro fronteiras,

crio meus próprios caminhos,

seguro e ergo bandeiras,

separo flores e espinhos,

pego a mão da companheira,

produzo e sinto carinhos.

 

Este feitio original,

feito numa só demão,

tem limo de banhadal,

com cerne no coração

e um cipó umbilical

que me entrelaça ao rincão.

Rincão, parte do meu ser,

de onde trago este jeito,

de pelear por bem querer,

de dar e exigir respeito,

com sua forma a bater

do lado esquerdo do peito.

 

Este músculo sagrado

que dentro do peito trago,

pulsa num trote chasqueado

e amolece com afago,

tendo veias de alambrado

marcando o mapa do pago.

Ele norteia minha vida

num galope caborteiro,

suporta a dor reprimida,

vaza ao sonho guerreiro,

ama em nota sustenida

e carrega o corpo inteiro.

 

Do corpo cedi a costela,

com amor no coração

e recebi ao doar ela,

como complementação,

a mulher, obra mais bela

da suprema criação.

 

Me chamaram de chamigo,

gáucho”, gaúcho, guasca,

que não refuga perigo,

na soleira ou na borrasca,

canta triste o canto antigo

conservando a mesma casca.

 

Por isto tenho esta graça

de nascer meridional

e carregar na carcaça

este meu gene ancestral,

prolongamento da raça

do velho pago natal.

 

Sou feito de terra, sim...

campo, areia, cafundó

em sesmarias sem fim

que jamais estarão só

pois voltarei donde vim

à terra, do pó ao pó.