RETRATO

(Romance das Mulheres dos Guerreiros)

                                           Delci Oliveira

 


Decerto guardava luto

porque sóbrio era o vestido.

Na linha austera dos lábios

nem sinal do riso ausente

se podia adivinhar.

Olhos com traços do oriente

e uma plácida tristeza

de névoa crepuscular.

Presos na coifa, os cabelos

sugeriam a nobreza

dessas damas de além-mar.

 

Havia mulheres tristes

no tempo desse retrato...

 

Mulheres de homens campeiros

nos horizontes abertos

para as longas recorridas,

duras domas e tropeadas

como não se fazem mais.

Uma vez ganhando a terra

os homens faziam guerra

para garantir a paz.

 

Homens chegados da Ibéria

ao chão dadivoso e rico

onde  seu sangue beduíno

verteu-se em seiva de angico

e no pampa enraizou.

 

Quando os homens reuniam

laços, cavalos e lanças

e se lançavam ao campo

com indômita esperança,

essas místicas mulheres

sabiam o seu mister;

E nas casas das estâncias,

nos ranchos desamparados,

ficavam só as crianças

e os velhos – aos seus cuidados.

 

Elas cuidavam de tudo

- lavouras e criação,

fiando a lã  para os ponchos,

moendo o trigo pra o pão,

criando gerações novas

de caudilhos e campeiros

a rigor dos sacrifícios,

de minuanos e mormaços,

porque esta terra pedia

as primícias do seu sangue

e as bênçãos de seu suor.

 

Eram fortes as mulheres

no retrato desse tempo...

 

Essas mulheres trigueiras

dos ranchos de palha e barro

faziam suas trincheiras

contra os bandidos andantes

e colunas estrangeiras;

e, das filhas que salvavam,

a seu exemplo formavam

novas mães e companheiras.

 

Aos fluidos da primavera

quando o verde renascia,

e se tramavam os ninhos

e floriam mal-me-queres

e as fêmeas eram fecundas

- coitadas dessas mulheres!

 

Na voz dos ventos pressagos

vinham cantigas ausentes,

apresilhando os sentidos

como silícios ardentes,

como pesados grilhões...

E a música igual dos grilos

espicaçava o silêncio

como esporas anunciando

a volta dos seus varões.

 

Eles chegavam cansados

quando não vinham feridos

( assim mesmo quando vinham )

para mudar de cavalo,

para fazer mais um filho,

porque a terra merecia

esse holocausto de sangue

em louvor a liberdade

para a nova sociedade

viver num tempo melhor.

E as mulheres, prestimosas,

pacientes sacerdotisas,

bem guardavam na memória

de milenar ascendência,

medicinas misteriosas

de jujos e benzeduras

contra dores e feridas;

e, em vigílias comovidas,

ao brando abrigo das quinchas,

dos seus dedos delicados

floresciam os bordados

das bandeiras e das vinchas.

 

Eram servis as mulheres

no retrato desse tempo...

 

E como eram solidárias

na lida dos ajutórios,

nos partos e nos velórios

e nos transes, e  responsos

dos terços tristes, chorados

por alma dos que morriam.

 

Rijas mulheres do pampa!

Enlutadas heroínas

que se chamaram de “chinas”

por esse esquivo recato

e pelos olhos rasgados

deixados de herança índia

nos sangues miscigenados!

 

Decerto delas herdamos

essa força primitiva,

essa fé que nos anima,

que mantém a raça viva,

perene através da idade.

Da mulher quase cativa

nasceu esta gente altiva

que ama tanto a liberdade!

 

Eram mulheres de fato

essas senhoras do pampa

no tempo deste Retrato!