PRELÚDIO À UM CAMPO MORTO

Jorge Claudemir Soares

Uma grota, uma sanga,
e um rancho a beira-chão,
Assim era o meu rincão
na costa do Caiboaté.
A casa, tinha parapeito
onde, nas noites de lua
a alma se postava nua
pra assoviar um chamamé.
 
Um jardinzinho na frente
contraponteava o palanque,
um potreiro logo adiante
pra’o pastejar do aguateiro.
A Madre-silva de cheiro
sombreava a cachorrada,
que dormia esparramada
no conforto do terreiro.
 
Um açude, feito espelho
bem pro lado do nascente,
em que a lua espiava a gente
nas noites de Primavera;
onde as estrelas cadentes
mergulhavam incandescentes
pra esconder suas quimeras.
 
Bem no moirão da porteira
de frente pro corredor,
um João-de-barro chismeiro
no seu ofício de oleiro
se arvorou de morador.
De manhã, tocava alvorada
só pra acordar sua amada
e declarar o seu amor.
 
Naquele rancho campeiro
se aquerenciou a amizade,
ali morou a verdade
ajoujada com a bonança,
era o baú de lembranças
que eu carregava em glória,
pra guardar a minha história
dos bons tempos de criança.
 Todo pássaro sai do ninho
no dia em que cresce a asa,
eu também saí de casa
e abandonei meu cantinho.
Amarguei reminiscências,
agora volto à querência,
cansado de andar sozinho.
 
Antes, não tivesse vindo
pra ver o que vejo aqui
o lugar em que nasci
com as cercas derrubadas.
Onde olho, é terra virada,
taipa e ronco de motor,
é o prelúdio do horror,
a própria essência do nada.
 
O sangue escuro da terra,
tingiu o campo do fundo,
abriu-se um sulco profundo
mais que na pampa – na alma.
A sanga que vagava calma
morreu por soterramento,
e a grota, por envenenamento
com a ganância do mundo.
 
No lugar da velha morada
restou um angico solito,
como o último milico
cobrindo uma retirada;
numa gesta desesperada
fincou pé na sua trincheira
na esperança derradeira,
de salvar a invernada.
 
Nem a sanga, nem a grota
resistiram ao progresso,
não assistiram o regresso
desse andarengo tordilho,
que sonhou legar aos filhos
a pampa íntegra e pura.
Porém, a volta foi mais dura,
que uma vida no lombilho.
 
Os sonhos somem no tempo
voam pra longe do alcance.
Rancho, potreiro e palanque
ficaram no pensamento;
somente o choro do vento
restou pra contar a história
sobrou apenas memórias
e o eco do meu lamento.
 
O clarim do João-de-barro,
não tocará mais na porteira,
nem a coruja breteira
descansará nas lonjuras,
só haverão desalentos
pra quem campereou sustento
no verde destas planuras.
 
Dou de rédeas no meu flete,
e saio batendo na marca,
com a sisma de um monarca
que perdeu o seu reinado.
Vou me arranchar no povoado
no balcão de alguma venda,
beber saudades da fazenda,
e ruminar o meu passado.
 
Venho basteriado de tempo,
e das andanças machaças;
vou afogar na cachaça
minha vocação de campeiro,
depois de velho... povoeiro,
sobrevivendo de changa.
me enterrem junto com a sanga
quando apagar meu luzeiro.