HERANÇA

 

João de Deus Vieira Alves

   

Ventava , como ventava

O  frio do amanhecer cortava como punhal

Invadindo o barraco ínfimo

João aos sobressaltos

Olha candidamente o filho ressonante

No berço de madeira carcomida,

Agarrado ao ursinho de pelúcia,

Presente esquecido, dum Papai Noel de outrora

 

Veste devagar, o fardamento

Apanha o capote-cobertor

Passando o guri prá junto da mãe

 Sob a luz bruxeleante d’uma vela

Dissipa n’agua restos de sonhos

Maria dorme, grávida, oito meses

Companheira de todas as horas

Faxineira a ajudar na renda familiar

 

No ônibus  os pensamentos fluem

Talvez pinte uma “Golfinho” no fim do ano

Como?  Se o comportamento não ajuda.

Por causa de um “bico “ que fez

Prá comprar comida e remédio.

A lista está quase pronta,

E com certeza ,será preterido de novo

 

O Amor pela Brigada, nasceu a trinta e tantos anos

Desde piá, nas filas da subsistência

Comprando com “bônus” gêneros a mais,

Azeite, açucar, café, e farinha

Para fazer “”touro” e assim sustentar

O vício do pai

 

Lembra dos antepassados que  a fio de espada e pata de cavalo

Peleavam e tombavam no chão pátrio do Rio Grande

Das estórias do avô, que nos tempos de Getúlio

Empunhou armas prá defender poderes
Do prório pai, sem soldo no fim do mês

Todos Brigadianos de estirpe, sempre de fronte erguida

Com bravura impar, dos orgulhosos de vestir uma  farda

 

 

 

Entra correndo no Batalhão

No parque de armas, retira o armamento

Embarca junto com seu Pelotão

Em um dos caminhões-choques estacionados

Sua missão : Assegurar a reintegração de posse

de senhores endinheirados

 

Outro Pelotão executará missão de rotina

Na zona urbana., lixões e favelas

A tarefa transcorre, com êxito

Descansar e rever a família

É bálsamo sagrado,  é direito,

No caminho de volta, pára no boteco

Compra fiado, cachaça , balas e pão

Mesmo com a farda encharcada

Assobia, canta até, resignado.  


Porém... sempre há um porém

Ao dobrar a esquina, para de chofre

No lusco-fusco da noite que se avizinha

Mal crê no que a vista enxerga

O que fora um aglomerado de barracos

Não passa de um monturo de escombros

Botado a baixo pela Administração Popular 

 

A sombra de um vulto destaca-se,

Tal qual uma Madona de trapos,

Maria sentada, guri no colo

Olhar perdido no vazio, em choque

Domingos chora copiosamente, o sal das lágrimas

Sulcam o rosto, esculpido em granito de ébano

Quem desaloja sem-terra, é despejado e vira sem-teto.

 

Um raio risca o horizonte

No breve clarão, a tempo de ler na placa de prata

Quase submergida, em meio aos despojos

“Honra ao mérito por bravura”