FLETE NEGRO

      Mozart Pereira Soares

 

      I

 

      Como num sonho pressago,

      vejo-te além galopear,

      roçando as vagas frementes,

      qual um tufão sobre o mar.

 

      Trazes nas patas de prata

      memórias de continentes,

      neves de vastas rechãs,

      flete de Paz e de açoite,

      corpo do negror da noite,

      franja do albor das manhãs.

 

      Teus olhos vivos e ardentes

      são dois sóis a cintilar...

      Em tua testa sombria

      reluz um signo estranho,

      feito uma estrela escarlate.

 

      E a crina de seda branca,

      que o vento em ondas defaz,

      é uma crista de combate,

      é um estandarte de Paz.

 

      Em teu tropel desabrido,

      calcando flores na terra,

      sonhando, em doidos delírios,

      alvas planícies de lírios,

      que florescem no amanhã,

      alvoroçaste manadas

      emangueiradas na aurora,

      e foste assim, campo em fora,

      deixando terras taladas,

      templos tristes e desertos,

      palácios em fumo e cinzas,

      fortalezas arruinadas.

 

 

      II

 

      Era pingo só de açoite.

      Onde seu rasto passava,

      toda a terra estremecia

      e mergulhava na noite.

 

      E as armas enferrujavam,

      as preces todas falhavam...

      Nem laços, nem boleadeiras,

      nem ciladas, nem mangueiras

      podiam subjugá-lo.

 

      Seta negra, desferida,

      como um corisco no Pampa,

      fugia o negro cavalo.

      Mas na terceira manhã,

      vieram três Prendas domá-lo.

 

      Meiga e serena, a primeira,

      sorrindo se aproximou.

      A palma branca e sedosa

      pelo seu chanfro passou,

      estendendo os longos dedos

      em macia rascadeira,

      roçou-lhe o torso fremente

      e ele humilde se aquietou.

 

      A segunda, incontinente,

      também sorrindo avançou,

      e abrindo, como um segredo,

      a concha da nívea mão,

      deu-lhe uma data de sal

      e ele lambeu e gostou.

 

      A terceira, ainda sorrindo

      e branca, se aproximou:

      os brancos braços unindo,

      fez do colo um embornal,

      e deu ao nobre animal

      doce e mística ração

      dos lírios que ele sonhou.

 

      Foi assim que ele se fez

      Pingo de açoite e de Paz.

 

      Quando as impávidas Prendas

      o flete manso deixaram,

      todos mudos, compreenderam

      que um milagre presenciaram,

      que o flete corpo de noite,

      com lampejos de manhã,

      e olhos de estranho fulgor,

      tinha fome e tinha sede:

      sede ardente de Justiça,

      Fome de Paz e de Amor.

 

      E não houve mais trabalhos

      para os homens encilhá-lo.

      Era tão doce de rédea,

      que imitava um burlantim,

      e tinha um trote de rede,

      para as Prendas no selim.

 

      As sangas cheias vadeava,

      recruzava banhadais.

      Nos rodeios apartava

      sem ajuda de sinuelo.

      Dia e noite galopava,

      e nem o suor apontava

      no negro enxuto do pêlo.

 

      Corria à frente das pencas

      de velozes parelheiros,

      e derrotava parceiros,

      sem reserva, em qualquer chão.

 

      O soldado que o montava,

      na guerra, não tinha medo,

      que em relâmpagos cruzava,

      como um pássaro de bronze,

      das lanças o espinharedo.

 

      A terra que ele lavrava

      ficava tenra e macia:

      amanhecia vestida

      de fartura e de alegria,

      numa canção matinal.

 

      Toda a neve que trazia

      nos finos cascos de prata

      era pão adormecido

      no cofre de ouro dos grãos.

 

      E nos desertos ardentes

      ou no sáfaro da terra,

      em que deixava seus rastros,

      como operário geral,

      semeava centelhas de astros

      e crestava as ervas más!

 

      ... e onde eram flores de Guerra

      nasciam flores de Paz!