A Morte de um Peleador

Cândido Brasil

 

Tempo atrás peleou lindo,

honrando a pátria gaúcha.

Sua memória hoje puxa

os entrechoques já findos,

sente que seu fim vem vindo

e tem de parar rodeio,

trucar a vida em carteio

pra rever os que partiram,

mas que sempre insistiram

em surgir nos sonhos feios.

 

Sua vida foi de peleia

desde os tempos de guri,

uma changa aqui e ali

pra deixar a pança cheia,

porque o sangue na veia

corria revoltado...

Brigar co’ a fome um pecado

que aumentava sua desgraça

e cresceu fazendo arruaça,

tão forte e esfarrapado.

 

De tanto pelear à toa

pelos rincões da querência,

luziu uma luz na consciência,

como uma centelha boa,

dizendo-lhe que a pessoa

um dia tem que se ajeitar

fazendo o que mais gostar,

sem importar o salário

e se ajustou voluntário

para ir à guerra pelear.

 

Se foi sem olhar para trás,

sobre as melenas a vincha,

cavalo sem sobre cincha,

de peito aberto no más,

matava até o satanás

se lhe cruzasse a frente,

cerrando dente com dente

goela aberta, lança em punho

tendo o sol por testemunho

a alumbrar o valente.

 

Tinha a faca carneadeira,

tinha a adaga pura prata,

ventena louco das patas,

acampamento e trincheira

companheirada matreira,

rondas pela madrugada,

trago, saudade, estrada,

coragem e medo em quantia

da folha que produzia

a gravata colorada.

 

O lenço era o ideal,

o símbolo, a referência,

trincheira de resistência

no entrevero  bagual.

Era o legado ancestral

levado por toda a vida

e com força desmedida

defendido até a morte

na base do berro forte

com valentia incontida.

 

Lembranças lhe vêm a tona

atropelando a memória,

sabe que fez sua história

de maneira redomona;

não teve patrão e nem dona,

o pago e a velha bandeira,

que a sua origem campeira

defendeu com muito afinco

nos idos de trinta e cinco

até a hora derradeira.

 

Vê nuvens de pêlo osco

bailando no firmamento,

cheiro de sangue no vento,

golpes profundos e toscos

corpos rubros de enrosco,

tombados sobre as flexilhas,

outros largados em pilhas,

estrebuchados, fedendo,

que morreram defendendo

as falanges farroupilhas.

 

Bate cascos e relinchos

retumbam nos seus ouvidos,

gritos, rezas e gemidos

murmurados em bochinchos;

mesmo quebrando o corincho

de muito cuera pavena,

seus olhos choram de pena

dos que se foram peleando,

mas acabaram deixando

nos ranchos crias pequenas.

 

Relembra ele os seus,

diz que é quase sempre assim,

quando se aproxima o fim

pra prestar contas a Deus,

o tempo que se perdeu

volta todo num instante

e ali quem  não se garante

e nem assume  seus atos

anseia ir ao mato,

se achica mesmo o gigante.

 

Mas ele é que não se achica,

afinal nunca foi disso,

sempre causou reboliço

com a sua faca nanica

e a morte que lhe estica

os braços pra um abraço

se nunca temeu planchaço

e nem fugiu de peleia

com a sua fuça feia

vai até levar um cagaço.

 

Solta então um sapucay

e uma baita gargalhada,

ri com a situação criada

pela vida que se esvai,

fica de pé, mas não cai

e já nem sente mais dor,

lhe corre um frio e um calor,

sabe que não vai viver,

mas vale a pena morrer

sendo quebra e peleador.

 

Sente a bichita atrevida

lhe sorrindo traiçoeira,

tianga louca de faceira

querendo levar sua vida,

sabe que não tem saída,

mas nem cogita em fugir,

vinha pensando em ir

pelear em plaga estranha,

por vez se perde ou se ganha,

tem é que se divertir.

 

A morte de um peleador

é uma cousa muito linda,

quando peleando é bem vinda,

não importa como for,

encara firme o pavor,

se benze e diz amém,

lembra o que fez de bem,

porque isto é o que vale,

manda que tudo se cale

e cala o pavor também.

 

E quando então a morte

lhe abraça o corpo ereto,

o velho guerreiro inquieto

agradece a sua sorte,

o último sopro forte

abraçando ela também,

do jeito que lhe convém

vai numa ansiedade louca

e beija a morte na boca

se indo pelear no além.