ANHANGÜERA

Mateus Neves da Fontoura

Intérprete: Carlos Weber

Amadrinhador: Clênio Bibiano da Rosa

Poema vencedor do 1º Lugar Melhor Poesia da 12ª Sesmaria da Poesia Gaúcha.

 

Venho do fundo do tempo

Me chamam diabo por velho.

Fui santo anjo no Império

Banido por traição

Sem alma, nem coração,

Sou só raiz de um passado

E venho hoje a esse pago

Despilchado de maldade

Pra primeira caridade

Desde os tempos de Adão.

 

Não debandem meus senhores,

Bem digo, venho em sossego!

De vós quero só um pelego

Porque o relato é comprido

E ando pouco dormido

Por pensar no desalento

Que me chegou pelo vento

Em parcos pingos de chuva:

O vosso campo quer cura,

Está morrendo ferido...

 

Mermaram os quartos de ronda,

Os tropeiros, as tropeadas.

O aboio das toadas,

Nas noites claras e mansas,

Se perdeu junto à andança

Que o tempo impôs ao seu jeito.

Despassito e sem direito

De contradita ou rebate.

Falta pouco pro arremate

De fazer tudo lembrança.

 

As carretas aonde andam?

Onde está o passo manso

Com choramingos e ranços

Dos eixos empoeirados?

- os muchachos desmamados

Hoje enfeitam moradas,

São adornos que as estradas

Perderam para os galpões

Alguns viraram tições

No fogo em meio ao rodado.

 

As taperas onde estão?

Aonde quer que se vá!

Aqui, ali, acolá...

... a esperar um retorno.

Silentes no seu entono

Feito um potrilho na forma

A vislumbrar sua hora

De ter o queixo quebrado

Sentindo o lombo apertado

Num dia claro de outono.

 

Não se vê mais o cantor

De violão, alma e garganta

Fazer levantar a pampa

Solito e sem atropelos,

Desfiando seus enredos

Desenredando injustiças

Cantando o pago, as conquistas,

Coisas de campo e de gente,

Com o mesmo olhar combatente

Do centauro dos varzedos.

 

Os orelhadores. Ah, os orelhadores!

Aqueles sim eram galos.

Sujeitavam mil cavalos

Tinham no pulso um palanque,

Tinham a força de um gigante

Nos contrafortes machaços

Escorando os manotaços

De baguais e de aporreados

Nos rituais abençoados

Da religião do Rio Grande.

 

As boleadeiras se foram

Com maniclas e retovos,

Com seus pealos de estouro

- verdadeiras poesias –

Sumiram as três marias.

E o boleador campechano,

De bombacha de dois panos,

De vincha rubra na testa,

Virou legenda que resta

Pros comentários do povo.

 

Sumiram os bois franqueiros

E a cavalhada crinuda,

Aquelas velhas sisudas

Com caras de vacas brabas

Já não resmungam suas falas

Ao derredor das cozinhas.

Se foi o tempo em que as rinhas

Quebravam monotonias,

Chegou o tempo que as vinhas

Cansaram das próprias uvas.

 

E assim me quedo por velho

Num último manotaço.

Guardem de mim um pedaço

Ao menos como lembrança

Pra assustar a criança

Que teima em fazer arte

Porque é seguro o aparte

Na boca do modernismo

Já chega de banditismo,

Do diabo velho, um abraço!

 

 

 

*Anhangüera = diabo velho em Tupi Guarani.