Sob um Deserto do Sul

 

 Vaine Darde

O que direi de nossa estirpe
Para os que, um dia,
Nos buscarem na história?
Para os homens do futuro,
Que, à margem de um rio extinto,
Escavarem nas areias,
Desse deserto indefensável
Que agora principia?

 

O que direi aos arqueólogos do amanhã
Que quiserem decifrar nossa vivência
Entre as cinzas de um fogo de chão
E objetos carcomidos
Do antigo cotidiano
De um galpão desenterrado?

 

A ciência lhes dirá
Que o ermo estéril onde pisam
Já foi campo ao sul da América,
Que sobre o solo de areias escaldantes
Outrora os rebanhos prosperaram,
Outrora as lavouras se expandiram
Sob a égide de um povo
Que alicerçou o seu domínio
Sobre o lombo do cavalo.

 

O que direi a esses homens
Quando ao tempo indagarem:
- Mas o que eles fizeram? -
Direi que uma estirpe de guerreiros,
Entre o rebanho e a lavoura,
Tanto cultivou a ambição
Que enlouqueceu pela ganância...
E no desvario de mais colheita,
E mais colheita e mais colheita,
Esqueceu-se do futuro...

 

Direi que envenenamos: primeiro a terra,
Depois os açudes, e as sangas,
e os rios, e o mar?
Direi que tanto exploramos os campos
Até que a pampa estéril se vingasse
Com vazio e solidão?
Que a próspera cultura eqüina dos gaúchos
Feneceu pelo descaso,
Pela sede desvairada de progresso.
Ou direi que, outra vez,
O fator humano foi a causa
Da tragédia da paisagem?

 

Talvez esses homens do futuro,
Um dia, encontrem, em suas buscas,
Um livro de Caetano Braun,
Uma guitarra de Yanel,
E não entendam que um povo
Provido de tal sensibilidade
Fosse, também, capaz
De tal violência com o campo.

 

Com certeza, quando os séculos
acumularem
Camadas e mais camadas de areia
sobre a pampa
E o deserto reclamar sua posse
sobre o sul,
Em alguma escavação os restos
de um galpão
Falarão, por nós, aos que vierem,
Dirão de nós toda a verdade
Nos tonéis de inseticida...
Nas latas de herbicida...
Nos laços...
Nas esporas...
Nas armas...
E, até, os nossos ossos falarão por nós...

 

Eu direi, apenas, nos meus versos
Que fomos também contaminados
Pelo mal do nosso tempo.
Por essa força natural da evolução
Que passou despercebida aos nossos olhos
Até que os recursos naturais se exaurissem
E, nem com os milagres da ciência,
Nem com máquinas poderosas
Conseguimos reparar todo
mal que cometemos.

 

Direi apenas que, apesar de pastoris,
Que apesar dos poemas e milongas,
E de todo romantismo das bailantas,
Nós também fomos perversos
E cultivando nossos sonhos
Destruímos nossa casa...
Que, assumindo a herança
De bárbaros invasores,
Contribuímos para o fim.

 

Tomara que, um dia,
O futuro não nos negue
Um lugar em seus museus!