VOLUNTÁRIOS DO MARTÍRIO

Sérgio Carvalho Pereira

Como ferro de lança
que vara a carne de um peito,
o ponto negro a lo largo,
de longe quase parado,
cruza a fronteira oriental.
São um punhado de homens,
trazem malas de vontade,
peçuelos de liberdades,
ponchadas de um ideal.

Suas peles... Couro templado
pelos guascaços do vento,
as barbas e os bigodões,
sem aparo ou qualquer trato.
E o entono... Trazem de berço.
Chapéus de abas bem largas
sombreando as rugas da cara.
E, como um timbre no peito,
o rubro e inquieto lenço.

O piquete então se enfurna
Rio Grande a dentro.
Sorvem distâncias embriagados
pelo ar de sua terra.
E nem o sol que lhes banha a testa,
o trote duro que castiga muitos dias,
lhes derruba o porte e a galhardia,
que é a única fortuna que lhes resta.
Até os cavalos batem casco diferente,
como que lendo o pensamento dos caudilhos,
meses de ausência mastigando seu exílio,
somando talhas de luas para a volta,
se para a desgraça, para a morte, não importa,
pois já nasceram voluntários do martírio.

"la llanura llenó cogotes de los caballos.
Y los yuyos bien curaron heridas
de fierro blanco,
em los campos castellanos fue
cambiando el tiempo malo.
Malaya! Pa retirada sólo les
quedaba um flanco.
Y al rumbo de la frontera
la vida se fue olfeteando.
Quando el fuego de fusiles
crepitaba al cielo azul,
el Uruguay quedó lejos
pa quien venia sangrando.
No más, los marcos que hablen tuita
esta historia del sur".

O Uruguai afinal ficara tão pequeno
pra tanta ânsia, tanta gana de retorno
como fora lerda a cura das feridas,
como foi mudo e moroso
o velar dos campeiros.
E se ascenderam muitos sóis e candieiros,
e se somaram o ontem e os ontontes,
sempre de olhares estendidos no horizonte,
como tourada apartada da querência,
berra saudade pro lugar de onde veio.

Então chegara a hora
e o desejo escondeu a cara e se foi
deixando enfim o prazer da certeza para a muda.
Foi a mais larga das noites,
a maior das madrugadas.
Como dormir se o sangue velho sentinela,
é voluntário para os quatro quartos?
Se há relampagos em suas almas
e que não são calmaria
se o sonho não espera o sono,
e lhes invade, e lhes adianta o tempo,
cinchando o sol para apressar o dia.

Aos poucos, a barra arma seu clarão no horizonte,
a alvorada cabresteia um novo tempo,
sons de esporas e barbelas principiam clarinada
até o matear já não se faz tão lento.
Os homens, ou tauras, são guerreiros nesta hora,
a hora em que o mundo se transforma.
Alvoroço e movimento,
buçais erguidos ao vento,
cavalos peitando a forma.

E beberam muitas léguas de retorno,
e vararam outra vez aquela linha.
Por que voltaram?
- eu sempre me pergunto.
Se sorte de a muito já lhes poupara a vida,
se as marcas, cicatrizes e feridas,
foram tudo o que ganharam, ou o que tinham.

E eu busco o que lhes fez tão fortes
o que lhes talhou feitos estátuas frias,
o que levou-os a abraçar a morte
neste duelo de coragens, mãos vazias.
Eu campeio, campeio e não encontro,
farejo esta resposta como um louco,
sou gaúcho, mesmo sangue,
mesmo entono, ar de potro,
quero sentir o que cada taura ao pelear sentia!