DOS MEMORIAIS DE UMA PORTEIRA ABERTA

Sebastião Teixeira Correa

 

Escancarou-se a porteira

dos campos de minha infância

para que a tropa judiada

buscasse novo horizonte,

novos rumos, nova aguada.

Talvez um novo destino

nos alolargos da estrada.

 

Os campos da minha infância,

tinham casa de madeira,

no vértice da cumeeira

a hélice giradeira

dos cata-ventos de pau,

nos galpões, todo o aconchego,

onde as camas de pelego

se estendiam no girau.

 

Os “guarda-fogo” cruzavam

compridas noites de inverno,

bastava atiçar-lhe o cerno

para que as brasas vermelhas

soltassem miles centelhas

que, como sonhos dourados

subiam rumo ao infinito,

e se apagavam no ar.

 

O fogo-de-chão campeiro

era o altar primitivo

para a comunhão dos mates,

para as conversas das domas,

das reculutas dos causos,

das tertúlias, do improviso,

das lendas e patacuadas,

e entre prosas e anedotas,

se encompridavam lorotas

no cruzar da madrugada.

 

Nas águas claras das sangas

tão puras, tão cristalinas,

a inocência das meninas,

se banhava na ilusão

de um dia ir prá cidade,

porque, decerto, o estudo,

o luxo, o falar bonito,

aquilo sim, deveria

trazer-lhes felicidade.

 

Que pena! As sangas mansas

sabiam, mas não falavam,

e apenas acalentavam

os sonhos de vaidade.

 

Chegou tão cedo o progresso

nos campos da minha infância,

no barulhento motor

do trator e moto-serra

a declaração de guerra

tirando a paz dos campeiros,

arados rasgando o ventre

sagrado do campo virgem,

transformando na vertigem

a paisagem dos potreiros.

 

O espaço livre dos potros

virou piquete apertado,

fez-se mangueiras, e o gado

foi preso em confinamento,

as fronteiras que se abriram

trazendo a evolução

geraram poluição,

causando envenenamento.

 

O peão de lida bruta

do serviço mais pesado,

mais rude, menos letrado,

sem profissão definida,

dói-se esgotando o ofício

e se mermando o serviço,

foi encurtando a comida.

 

Viver de changas escassas,

sem direitos, nem salários,

engordar latifundiários

e contentar-se co’as sobras,

não é das estirpe campeira,

mesmo que às vezes se queira

evitar outras peleias,

o sangue ferve nas veias

escancarando a porteira.

 

E o mato-burro da estância

viu passar tropa de gentes,

no sofrimento, silentes,

já quase sem esperanças

buscando, rumo do povo,

searas de um tempo novo,

futuro para as crianças.

 

O campo foi testemunha

da saga dos infelizes,

quantas marcas, cicatrizes,

nesse trajeto de horrores,

sentindo o cheiro das flores,

mas ferindo-se aos espinhos,

plantando cruz nos caminhos

ao longo dos corredores.

 

Enfim, a cidade grande

e os cinturões de pobreza,

onde a miséria e a tristeza

povoam o rancherio,

e em quantas noites de frio,

sem bichará, sem braseiro,

chora a saudade, o campeiro,

do rancho de onde partiu.

 

E ao lento passar das horas

dos dias, meses e anos,

a chaga dos desenganos

se aprofundando no peito,

a cria nasce sofrida

e cresce, às vezes, perdida

com a marca do preconceito.

 

A armadilha luminosa

na ribalta da cidade,

por traz da luz que irradia

oculta estranha magia

do submundo povoeiro,

na mesa que se oferece

para brindar comunhão,

em lugar de vinho e pão,

o banquete da ilusão

é de dor e pesadelo.

 

E ao me dar conta, afinal,

que a porteira escancarada

fez um vazio na invernada

dos campos da minha infância,

campeei os sonhos perdidos

nos escombros das taperas,

nos bamburrais, nas tigüeras,

na voz do vento, sentida.

E nesta estrada esquecida

onde os rastros se apagaram,

as lembranças que ficaram

são meus pedaços de vida.

 

Então, dos anos já gasto,

ergui na ponta do mastro

minha última bandeira.

Se acaso um dia Deus queira

trazer o povo de volta,

eu quero fazer a escolta,

e na emoção derradeira

enquanto a tropa se apruma,

hei de fechar, uma a uma,

as varas desta porteira!