Cantador das Sesmarias

Pedro Darci de oliveira

 

Meu senhor dono da casa ...

A dalva desperta o dia

Que adormeceu na lagoa.

Os seus olhos preguiçosos

Avermelhados de sono,

Vão demarcar os limites

Das águas e do infinito,

Onde um João grande, solito

Segura o final de outono.

 

As lágrimas do sereno

Brilham nas hastes dos juncos,

Como vidrilhos da noite

Que perderam a razão.

Uma marreca piadeira

Mistura sinais de vida

Que passam despercebidas

Entre as flexilhas do chão.

 

Não sei porque remontei

O mesmo canto de outrora

Nos acordes desta aurora

Sonorizando a manhã,

Quando a dalva escondida

Na goela de uma cigarra,

Imitava um contraponto

Como o namoro das rãs.

 

Aqui nasceu um costeiro,

Com misto de pantaneiro

E sangue do litoral ...

Não tinha ponta difícil

E sabia o chão que pisava

Desde a caverna do uivo

Ao canhadão do enterrado ...

Se criou pelos banhados

Dos costados da lagoa,

E tinha aprendido o gosto

Com seu avô ... já finado.

 

Quem faz da noite seu mundo

Tem os astros nos braseiros,

E o cintilar do luzeiro

No picumã de um tição.

Os mates remontam causos

De cada alma estradeira,

Mirando a estrela boieira

Rondar o fogo de chão.

 

Tudo era seu, e não era

Se pra servir um vivente.

O Gica era diferente

De tudo o que já se viu,

Pra ele a vida era a farra

De uma carpeta de truco,

E o resto ... é resto e dá lucro

Nos bailes de rancheirio.

 

Por muitas vezes tentei

Ser um ás neste baralho,

Onde a manilha de espada

Esquenta as costas de um rei.

Mas entrava nas apostas

Sempre de rédea aparada,

E eram cartas marcadas

As flores que não cantei.

 

Croaldo Souza Amaral,

Lembra dele? ... ah! Se lembro

Lá pelo fim de dezembro

Quando o natal vai-se embora,

Se ouvia o som de uma viola

No compasso de um lagüero,

E um “tipi”, alto e campeiro

Levando a noite pra fora.

Não era um terno de reis

Se o Gica não viesse junto.

 

Dava gosto de se ver

Em desafio contra os grilos,

Cada um no seu estilo,

No seu modo de cantar.

 

- Porta aberta, luz acesa ...

 

“O vovô Gica chegou”.

Entrava rumo ao presépio

Pra saudar Jesus nascido,

E anunciar aos mais descrentes

Que cristo estava presente,

Para guiar seu rebanho

Como havia prometido.

 

E assim cruzou a querência

Anunciando a boa nova

Qual mensageiro de Deus.

Porém o tempo velhaco

Às vezes, sem mais nem menos,

Sem usar qualquer critério,

Escolhe o seu favorito.

 

E numa destas o Gica

Foi pego desprevenido ...

Mas só cambiou de querência,

Ainda é o mesmo gaúcho

Nas sesmarias do céu.

Hoje, quando esta lagoa

Se encrespa num alvoroço,

É ele dando um abraço

No jardim do seu amor.

 

E um novo terno de reis

Contraponteia com os grilos

É o Gica, o Jaime e o Rillo

Cantando um canto de flor.