EU VI UM DIA

Paulo Ricardo Costa

 

Eu vi um dia... Antes da cancela do tempo se fechar pra mim...
O passo lento dos bois seguir tranqueando no corredor vazio,
Buscando o rumo até findar-se nas barrancas d’algum rio...
Onde homens sesteavam as sombras mansas dos confins;
Mas o progresso, que foi muito mais rápido do que os bois...
Deixou-me na memória o rangido, que ao tempo se perdeu,
E a carreta virou relíquia nas paredes escuras dos museus,
Entre tentos de ajoujos, rejeiras, cangas e um sonho que se foi;

Eu vi um dia... Por entre as ressolanas de um sol de abril...
A tropa mugindo triste culatreadas por campeiros de verdade,
Cruzar o horizonte que se findou na minha ingenuidade,
E na sombra de uma lua grande pelas noites se sumiu;
Deixando somente a poeira rasa de uma saudade louca,
Que sufoca a minha alma pelo calor das madrugadas...
Quando mateio, com a mesma alma, hoje, empoeirada,
Na amargura terrunha que ofusca o céu da minha boca;

Eu vi um dia... O homem na força bruta domar um cavalo,
E na maestria dos deuses que fazem a vida nas encilhas,
Cortar horizontes e canhadas no reponte de uma tropilha...
Acordando o Rio Grande bem antes do cantar dos galos;
E vestindo-se com o poncho rubro de um final de tarde...
Voltar ao rancho repontando anseios duma nova aurora,
Calçando a Pátria Sulina no gaguejar de cada espora...
Como se o tempo fosse mais rebelde do que a saudade;

Eu vi um dia... Ninguém me contou o que eu sei...
Que os homens antigos comungando na paz dos galpões,
Tinham o respeito, muito mais, do que as suas razões,
E o fio de bigode era documento maior do que a lei,
E uma palavra depois de empenhada, não tinha volta...
E o homem que não a cumprisse já sabia a sua pena,
Pois mais que a indiferença, a vergonha lhe condena,
Entre olhares rebenqueados na amargura das revoltas;

Eu vi um dia... Tanta coisa que, hoje, não vejo mais...
Não vejo, porque dizem que este mundo está mudado,
E a pressa galopeia como se não houvesse um passado,
Onde os filhos não respeitam nem importância dos Pais;
A janela que me oferecem nesse quarto de apartamento,
É um tubo de imagem que traz o mundo que não conheço,
Bem ali onde a ganância e a mentira são apenas adereços...
Rodeado por grades de ferro sobre os chãos, de cimento;

Eu vi um dia... E o que eu vi, hoje, me traz saudade...
Porque a vida é areia movediça que enterra aos poucos,
E o homem na sua elucides mais parece um louco...
Que destrói seu próprio mundo com gana de crueldade;
E não se contendo, ainda, com a destruição da terra...
Escraviza-se num progresso, num barbaresco ritual,
Numa doença febril volta a ser um primitivo animal,
Extravasando seu ódio em potentes máquinas de guerra;

Eu vi um dia... E talvez, nunca mais, verei de novo...
Nas ilusões estradeiras que conduzem a minha alma,
Encontre quem sabe um dia, numa noite terna e calma,
A paz que um dia tive na simplicidade do meu povo;
E a vida, por ser bela, dê-me os momentos de alegria,
E o ranchinho ainda deitado lá num fundo de rincão...
Dê-me as noites mais ternas, no calor de algum galpão,
Para que possa envelhecer na ilusão dos meus dias;

E quando o vento do outono secar as folhas e os frutos,
Quem sabe encontre nas veredas dos meus confins...
A parte mais doce do que a vida guardou para mim,
E tire do próprio vento as canções que já não escuto;
Pois sei que envelheço e a idade não vem tardia...
Mas sei também que a morte é passagem derradeira,
Presente que nos foi dado para ter a vida inteira...
Mas roubaram-me ao tirarem tudo o que eu vi um dia;