CERNE NATIVO

Paulo Sérgio Boita

      Vivi meio a lo léo

      Teatino dos quatro ventos

      Levando a vida nos tentos

      Por quincha tinha o chapéu

      Por guia, a boieira no céu

      No peito, o ideal campesino

      Peleando desde menino

      Em meu potro de taquara

      E hoje, meio na marra

      Peleio por meu destino

 

      E se assim me constitui

      Entremeio a solavancos

      Um liberto, até os brancos

      Repontarem por aqui

      A pilcha, era um toropi

      O sangue, livre na artéria

      Pra hoje, só ver miséria

      De negros, bugres, infindos

      Desprezados pelos gringos

      E pelos primeiros da Ibéria

 

      E se assim foi, desde o inicio

      Onde o índio de verdade

      Perdeu a liberdade

      Para maulas, que por vício

      Já tratavam de resquício

      Outros, noutros tempos

      E depois, os seus rebentos

      Nestas terras campeiras

      Hastearam suas bandeiras

      Com a ganância nos tentos

 

      Ao raiar dum novo dia

      O cheiro da liberdade

      No berço da humanidade

      Da raça bugra e bravia

      O índio que aqui vivia

      Sem cometer abusos

      Deparou-se com intrusos

      Que se vieram de longe

      Primeiro veio o monge

      Depois, paulistas e lusos

 

      E se enraizaram aqui

      Os irmãos de Santo Inácio

      Escrevendo o prefácio

      Da epopéia guarani

      Que evoquei quando nasci

      Por eu ser descendente

      Desta estirpe imponente

      Que me tornou um pajé

      Irmão gêmeo de Sepé

      E cacique remanescente

 

      E neste pago bendito

      Surgiu um novo brasão

      Com Jesus no coração

      Ia o índio ao tranquito

      Peleando meio solito

      Co'a tirania inclemente

      Ou na linha de frente

      Dos índios beligerantes

      Pra expulsar os bandeirantes

      Das plagas, de nossa gente

 

      Mas não foi uma peleia

      Destas de mano-a-mano

      Por que o luso e o hispano

      De garruchas e maneias

      Se lançaram contra a aldeia

      Em forma de redução

      E o índio, meu irmão

      Miliciano de Sepé

      Tombou em Caybaté

      Bravio, defendendo o chão

 

      E nas escaramuças guerreiras

      Eu peleei com castelhanos

      A lo largo dos anos

      No ofício de demarcar fronteiras

      E nestas terras campeiras

      Sempre na força do braço

      Com a justiça no aço

      Que carrego na cintura

      Eu peleei em noite escura

      E em tardes de mormaço

 

      Depois, em trinta e cinco

      Houve mais uma peleia

      Quiseram passar a maneia

      No nosso povo, já faminto

      Mas bradamos com afinco

      Até os confins da humanidade

      E o pendão da liberdade

      Se ergueu em nossos atos

      E o levante dos farrapos

      Restaurou a liberdade

 

      Mais adiante, fui maragato

      Numa contenda campeira

      Fui chimango, fui bandeira

      Dois partidos, dois redatos

      Os tauras, intemeratos

      Numa epopéia bravia

      Se entrechocaram um dia

      Num medonho ala pucha

      Manchando a terra gaúcha

      Do índio, que aqui vivia

 

      Fui o estandarte gaúcho

      Do Brasil, altivo e belo

      Defendi o verde e amarelo

      Sem sucumbir ao repuxo

      Fui sentinela, sem luxo

      Pelos campos europeus

      Defendendo irmãos meus

      Das falanges inclementes

      Centauro, na linha de frente

      Por ordenança de Deus

 

      Hoje, sou o mesmo de fato

      Que já fui no passado

      Ando sempre entreverado

      Nas peleias que relato

      Sou o mesmo peão farrapo

      Dos embates de garrucha

      Da adaga, que estrebucha

      E na imensidão deste pampa

      Sou payador que estampa

      A própria cepa gaúcha