O CARRANCHO

Marco Pollo Giordani

 

Primeiras penas cobriam

O vulto do caranchinho

Que aos poucos ia crescendo...

Olhando o mundo tão vasto

Por dentre os ramos do ninho.

 

Num catre novo e macio,

Choramingava um piazote

Bombeando résteas de sol

De um mundo desconhecido!!

 

Comia da carne nova

Que a fêmea grande lhe dava.

 

Mamava do leite quente

No peito terno da mãe.

 

Primeiro vôo e, então,

Deslumbrou-se a pradaria...

E bem logo compreendia

Do seu viver a razão!

 

O piá viçoso e arteiro,

Curiosando  o dia inteiro

Firmava os primeiros passos

Desabrochando pra vida...

 

A vida - sovéu de anseios

De tentos pura ilusão!

 

Aprendera bem ligeiro

As gavionices da lida...

Pois lhe Vieira de nascência!

 

Veio a cartilha do mestre

Numa colhera de letras

Para povoar-lhe a memória...

E o piá mermava a inocência

Nos golpes da palmatória.

 

Na verde calma do campo

O Sol brincava de cores

No colo da liberdade;

 

Nas fofoquices do povo

Sombras de almas perversas

Formavam quadros tão puros

No espelho da sociedade!!

 

Um dia um peão de tocaia

Tirou-lhe penas do lombo

Porque no mais se atrevera

Negacear perto do rancho.

 

Andou sumido um tempão

E mais arisco ficara...

 

Um dia o piá já taludo

Embreteou-se em lenga-lenga

Quase entalando a xerenga

Na pleura dum papo-roxo.

 

Andou comendo do ruim...

Rumbiando em cantos alheios.

A vida já era um mate...

De erva braba e lavado!

 

Por entre trago e risada

E o vozerio do chinedo

O tilintar compassado

De um par de chilenas grandes

Riscava traços no chão.

 

E lá de um canto da sala

Perguntava o Comissário

Pra um negro velho, encostado

Numa ponta do balcão;

- Quem é aquele safado

que entrou bombeando por cima

tipo tourito entonado

farejando no rodeio?

 

- Aquele de olhar ligeiro

E das ventas feitio de gancho?

- Aquele seu Delegado...

É o dito cujo Carancho.

 

Um depenas vestido

Semeando no campo aberto

Terror em borrego novo;

 

O outro um taura pilchado

Que sofrendo fez-se homem

Pensando o triste ajoujado

Dos entreveiros do povo.

 

Um pelo instinto guiado

Em missões de rapinagem

Na liberdade selvagem

Que o mundo lhe reservou.

 

O outro não por querer

Mas sim pela circunstância...

Transformou-se em renegado.

Porque depois que cresceu,

Muito tarde compreendeu...


 


Que a vida era um sangradouro

Por onde esvaíam sonhos

Transformando o coração...

 

E no silêncio das mágoas,

De si pra si martelando;

Entre ser bom ou ser mau,

Prefiro ficar na moita

Com um pouco de cada um.

 

 

Grudado ao corpo um rosário

- E um pau-de-fogo também!

A diferença que existe

Que a ave me retrata

Nunca usou de caridade.

E quando dá alce ao vôo

Para o ensaio da rapina,

Espalha sobre a campina

Seus requintes de maldade.

 

Um de penas vestido

Semeando no campo aberto

Terror em borrego novo;

 

O outro um taura pilchado

Que sofrendo fez-se homem

Penando o triste ajoujado

Dos entreveiros do povo!!

 

Levanta vôo carancho

Te cambeie pra outros pastos

Onde haja carne farta

Pra teus desejos saciar;

 

Atiça o fogo carancho

Pra que esta chama alimente

Este teu sonho bonito...

Único sonho que ainda

Vive em ti tão transformado

E grite pra este alambrado

Nalgum rastro de inocência:

 

Quero ter na outra Querência

O que aqui me for negado!!